Confederalismo democrático – Wikipédia, a enciclopédia livre

Confederalismo democrático[1][2] (em curdo: Konfederalîzma Demokratîk; também conhecido como Comunalismo curdo ou Apoismo[nota 1]) é um conceito político-social teorizado pelo ativista turco de origem curda Abdullah Öcalan[4] de um sistema de auto-organização democrática em forma de confederação baseado em princípios como multiculturalismo, feminismo, economia compartilhada, ecologismo, democracia direta, autonomismo, autogestão e autodefesa.[5][6][7][8] Sistematizado por Öcalan a partir de seus estudos sobre ecologia social, municipalismo libertário, historia do Oriente Médio, nacionalismo e teoria geral do Estado,[9] o conceito é apresentado como a solução política para a questão curda, bem como de outros problemas fundamentais em países da região profundamente enraizados à sociedade de classes, e a possibilidade concreta da libertação e da democratização para os povos em todo o mundo.[10][11][12]

Embora em sua origem a luta do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (Partiya Karkerên Kurdistanê, PKK) tenha sido guiada pela perspectiva de criação de um Estado nacional curdo a partir de um viés marxista-leninista,[8][13] Öcalan desiludiu-se com o modelo de Estado-nação e o socialismo estatal, percebendo equívocos nessa ideologia a respeito da libertação nacional e social dos povos.[14][15] Influenciado por ideias de pensadores ocidentais como o sociólogo Immanuel Wallerstein e, principalmente, o anarquista e ecologista social libertário Murray Bookchin[16] - em especial pelos conceitos sobre ecologia social e municipalismo libertário deste autor[17][18] -, Öcalan reformulou profundamente os objetivos políticos do movimento de libertação curdo, abandonando o velho projeto socialista estatista e centralizador por uma radical e renovada proposta de socialismo democrático-libertário que não almeja mais a construção de um estado nacional independente da Turquia, mas do estabelecimento de uma entidade autônoma, democrática e descentralizada a partir das ideias do chamado confederalismo democrático.[19][20][21]

Refutando tanto o autoritarismo e o burocracismo do socialismo estatal quando a predação do capitalismo, sistema visto por Öcalan como maior responsável pela desigualdades socioeconômicas, pelo sexismo e pela destruição ambiental no mundo,[8][22] o confederalismo democrático defende um "tipo de organização ou administração pode ser chamado de administração política não estatal ou democracia sem Estado",[1][2] que proporcionaria os marcos para a organização autônoma de "toda comunidade, grupo confessional, coletivo específico de gênero e/ou grupo étnico minoritário, entre outros".[23] É um modelo de democracia participativa[24][25] construído sobre a autogestão de comunidades locais e a organização em conselhos abertos, conselhos de município, parlamentos locais e congressos gerais, onde os próprios cidadãos são os atores desse autogoverno, permitindo a indivíduos e comunidades exercerem influência real sobre seu ambiente e suas atividades em comum.[4][26] Inspirado pela luta das mulheres no próprio PKK,[27] o confederalismo democrático estabelece a igualdade de gênero como um dos seus pilares centrais.[1][2] Vendo o sexismo socialmente arraigado como "um produto ideológico do estado nacional e do poder" não "menos perigoso que o capitalismo,[28][29] defende uma nova visão de sociedade a fim de desmontar as relações institucionais e psicológicas de poder estabelecidas atualmente nas sociedades capitalistas e de assegurar às mulheres um papel vital e igual ao dos homens em todos os níveis da organização e tomada de decisão.[16][17] Outros princípios chaves do confederalismo democrático são o ambientalismo, a autodefesa, o multiculturalismo (religioso, político, étnico e cultural), as liberdades individuais (como as de expressão ou de escolha), e uma economia compartilhada, onde o controle dos recursos econômicos não pertence ao Estado, mas à sociedade.[7][30][31] Ainda que se apresente como um modelo oposto ao estado nacional, o confederalismo democrático admite a possibilidade, sob circunstâncias específicas, de coexistência pacífica entre ambos, desde que não haja intervenção em assuntos centrais da autogestão nem tentativas de assimilação social.[32][33] Ademais, embora tenha sido teorizada inicialmente como uma nova base social e ideológica para o movimento de libertação curdo, o confederalismo democrático apresenta-se como um movimento antinacionalista, multiétnico e internacionalista.[4][8][34]

As linhas gerais do confederalismo democrático foram apresentadas em março de 2005, através de uma declaração "ao povo curdo e à comunidade internacional"[4] e, nos anos posteriores, o conceito foi melhor aprofundado em outras publicações, como em um livro de título homônimo e nos quatro volumes do "Manifesto da Civilização Democrática".[9] Pouco depois de divulgado, a declaração foi imediatamente adotada pelo PKK, que organizou assembleias clandestinas na Turquia, na Síria e no Iraque, das quais resultou a criação da União das Comunidades do Curdistão (Koma Civakên Kurdistan, KCK), a organização política comprometida com a execução do confederalismo democrático. A oportunidade para implementá-lo surgiu durante a Guerra Civil da Síria,[18][22][35] quando o Partido de União Democrática (Partiya Yekîtiya Demokrat, PYD) declarou a autonomia de três cantões de Rojava (também conhecido como Curdistão sírio).[30][36][37]

Formado na década de 1970 sob o contexto de bipolaridade geopolítica da Guerra Fria, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) foi inspirado inicialmente por movimentos de libertação nacional em todo o planeta,[13][38][39] muitos dos quais influenciados por ideais marxistas-leninistas e do nacionalismo de esquerda.[40] Com o passar dos anos, contudo, o PKK foi distanciando-se dessas ideologias, por considerar que a questão curda não era um mero problema de etnicidade e nacionalidade[nota 2] resolvido pela tomada revolucionária do poder estatal ou pela constituição de um estado nacional independente.[13][41] Tornando-se um grande crítico da própria ideia de estado nacional e mesmo da libertação nacional e social pela perspectiva marxista-leninista,[42][14][15] Abdullah Öcalan, líder do PKK, iniciou na década de 1990 uma transição substancial do movimento de libertação curdo em busca de uma forma de socialismo distinta do sistema estatista e centralizador associado à antiga superpotência soviética.[16][17][43]

Esse processo de rompimento consolidou-se após a captura e prisão de Öcalan pelos serviços de inteligência da Turquia em 1999.[43] Embora seja mantido em regime de isolamento na ilha-prisão de İmralı, Öcalan aproveitou seu tempo não apenas para preparar sua estratégia legal de defesa no decorrer do processo jurídico do turco que havia o condenado à morte, como também de elaborar suas propostas sobre a questão curda e sobre sua solução política.[9][43] Tendo acesso a centenas de livros, incluindo traduções turcas de numerosos textos históricos e filosóficos do pensamento ocidental, seu plano inicialmente era encontrar nessas obras fundamentos teóricos para legitimar as ações revolucionárias passadas do PKK e discutir a conflito entre turcos e curdos no século XX dentro uma análise abrangente do desenvolvimento do Estado-nação ao longo da História.[9][16] Dessa forma, Öcalan iniciou seus estudos a partir da mitologia suméria e das origens das culturas neolíticas, bem como da história das primeiras cidades-estados.[16][17] Mas foram as leituras de pensadores como Friedrich Nietzsche (que Öcalan chama de "profeta"), Fernand Braudel, Immanuel Wallerstein, Maria Mies, Michel Foucault, e particularmente Murray Bookchin,[nota 3] que o levaram a ruptura definitiva com a perspectiva socialista de víes marxista-leninista e desenvolve uma nova proposta de socialismo democrático chamada de confederalismo democrático.[8][16][17]

A condenação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos à Turquia por “tratamentos desumanos” e “processo injusto” no caso de Öcalan, e o consequente pedido dessa corte da União Europeia por um novo julgamento para o líder curdo,[44][45] ofereceu-lhe a oportunidade para dar visibilidade internacional a sua nova proposta política.[9] Em 20 de março de 2005, data da celebração do Ano Novo Curdo, Öcalan divulgou a "Declaração do Confederalismo Democrático no Curdistão",[4] onde lançava a bases teóricas iniciais do confederalismo democrático. Posteriormente, este foi melhor desenvolvido e apresentado em obras como "Confederalismo Democrático" e "Manifesto da Civilização Democrática" (esta última em quatro volumes).[9]

O Confederalismo Democrático do Curdistão não é um sistema estatal, mas sim um sistema democrático das pessoas sem um Estado. Com as mulheres e a juventude na vanguarda, é um sistema no qual todos os setores da sociedade desenvolverão organizações democráticas próprias. É uma política exercida pelos cidadãos livres confederados, iguais na escolha de seus representantes regionais. Está fundado na sua própria força e habilidade. O seu poder deriva das pessoas e em todas as áreas, incluindo-se aí a economia, buscará a autossuficiência.
 
Abdullah Öcalan, Declaração ao Povo Curdo e à Comunidade Internacional, março de 2005[4].

Caracterizados por necessidades do movimento curdo espalhadas por Turquia, Síria, Irã e Iraque, os estudos de Öcalan que resultaram no confederalismo democrático abordaram diversos aspectos da sociedade curda nos campos da antropologia, da linguística, da política internacional, do direito internacional e da abordagem feminista chamada jineologia, esta especialmente inspiradas na luta de mulheres do próprio movimento curdo, como Sakine Cansiz.[9][27] Sua maior inspiração teórica foram as ideias de ecologia social e municipalismo libertário do pensador estadunidense Murray Bookchin.[8][16][46] Em suas obras, Bookchin defende que a submissão e a destruição da natureza são a continuação da submissão de outros seres humanos ao capitalismo. Estabelecendo uma conexão entre a crise ambiental e a sociedade capitalista, o filósofo americano observa que a estrutura social da humanidade precisa ser repensada e transformada de uma sociedade capitalista destrutiva para uma sociedade social ecológica que mantenha um equilíbrio entre suas partes e onde suas comunidades possam organizar suas vidas de forma independente a partir de um ente municipal-confederativo.[47][48][49]

Profundamente admirado por essas concepções de Bookchin, Öcalan desenvolveu uma visão crítica ao nacionalismo e ao Estado-nação que o fez interpretar o direito dos povos à autodeterminação como "a base para o estabelecimento de uma democracia de base, sem necessidade de buscar novas fronteiras políticas".[16] A partir disso, o líder curdo defende que a solução política para o povo curdo não passe pela fundação de um novo estado nacional, mas da constituição de um sistema democrática, descentralizado e autônomo de auto-organização em forma de confederação.[5][6][7][8]

A solução que eu ofereço à sociedade turca é simples. Nós reivindicamos uma nação democrática. Nós não fazemos oposição à unidade do Estado e da República. Nós aceitamos a república, sua estrutura unitária e seu caráter laico. Nós cremos, entretanto, que esta república deve ser redefinida com o objetivo de formar um estado democrático, um estado que respeite os direitos dos diferentes povos e culturas existentes em seu território. Sob esta base, os curdos devem ser livres para se organizar de tal maneira que sua língua e cultura possam ser exprimidas e que eles possam desenvolver-se nos planos econômico e ecológico. Esta nova realidade permitiria a curdos, turcos e membros de outras culturas uma convivência sob a proteção de uma “Nação Democrática Turca”. Isto somente seria possível, no entanto, através de uma constituição democrática e de um quadro legal avançado que garantiria o respeito às culturas minoritárias. Nossa visão de uma nação democrática não é definida por bandeiras ou fronteiras. Nossa visão de uma nação democrática é inspirada pelo modelo democrático e não por um modelo baseado em estruturas estatais e em origens étnicas.
 
Abdullah Öcalan, Guerra e paz no Curdistão, 2008[50].

Os principais fundamentos do confederalismo democrático podem ser resumidos em:[5][6][7]

Implementação

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Em 1º de junho de 2005, o PKK adotou oficialmente o programa do confederalismo democrático ao final da 3ª Assembleia Geral do Congresso do Povo do Curdistão (Kongra Gelê Kurdistan).[51] A partir de então, o movimento de libertação curdo começou a formar assembleias clandestinas imediatamente na Turquia, na Síria e no Iraque, que resultaram em 2007 na criação da União das Comunidades do Curdistão (Koma Civakên Curdistão, KCK), a organização política comprometida com a implementação da ideologia do confederalismo democrático.[4] Além de reunir o PKK, o KCK também reúne todos os partidos políticos confederalistas democráticos do Curdistão, como o Partido de União Democrática (Partiya Yekîtiya Demokrat, PYD), Partido da Vida Livre do Curdistão (Partiya Jiyana Azad a Kurdistanê, PJAK) e Partido da Solução Democrática do Curdistão (Partî Çareserî Dîmukratî Kurdistan, PÇDK).

Foi durante a Guerra Civil na Síria que surgiu a oportunidade de implementar a nova doutrina política de Ocalan, quando o PYD declarou a autonomia de três cantões de Rojava, região que compreende partes do norte e nordeste do território sírio.[17][18][22] Criando uma entidade política oposta ao Estado-nação capitalista, Rojava experimentou uma experiência de sociedade democrática, descentralizada e não hierárquica,[35] baseada em ideias feministas, ecológicos, multiculturais, de economia compartilhada, e da política participativa e de construção consensual.[30][36][37]

Notas

  1. Seguidores de Öcalan e membros do PKK são conhecidos por seu nome diminuto como Apocu (Apoitas), e seu movimento é conhecido como Apoculuk (Apoismo).[3]
  2. Em seu livro "Em defesa do povo" (publicado em alemão em 2010), Öcalan escreveu que "o desenvolvimento da autoridade e da hierarquia mesmo antes do surgimento da sociedade de classes é um ponto de virada significativo na história", acrescentando que "nenhuma lei da natureza exige que as sociedades naturais se transformem em sociedades hierárquicas baseadas no estado" e avaliando que seria um grande erro "a crença marxista de que a sociedade de classes é uma inevitabilidade."
  3. Öcalan havia lido "A Ecologia da Liberdade" e concordado com a análise de Bookchin. Em busca de orientação teórica, o líder curdo pediu para Reimar Heider, seu tradutor alemão, enviar um escreveu um e-mail a Bookchin. A mensagem foi enviada em abril de 2004, e contava que Öcalan estava lendo traduções turcas dos livros de Bookchin na prisão e se considerava um "bom aluno" de suas obras". Além disso, Öcalan havia recomendado os livros de Bookchin "a todos os prefeitos de todas as cidades curdas e queria que todos os lessem".[16] Bookchin e Öcalan corresponderam-se por um tempo.[18] O filósofo estadunidense morreu em 2006.
  1. a b c Öcalan 2016a, p. 27.
  2. a b c Öcalan 2016b, p. 122.
  3. Mango 2005, p. 32.
  4. a b c d e f g Öcalan 2005.
  5. a b c Öcalan 2016a, pp. 27–34.
  6. a b c Öcalan 2016b, pp. 122–127.
  7. a b c d Öcalan 2008, pp. 31–37.
  8. a b c d e f g Dirik 2016, chpt. 2.
  9. a b c d e f g Öcalan 2016b, p. 115.
  10. Öcalan 2016a, pp. 37–46.
  11. Öcalan 2016b, pp. 127–132.
  12. Öcalan 2008, pp. 7–8; 34–35.
  13. a b c Öcalan 2016a, p. 15.
  14. a b Öcalan 2016b, pp. 117–119.
  15. a b Öcalan 2008, pp. 29–30.
  16. a b c d e f g h i Bookchin 2018.
  17. a b c d e f Shilton 2019.
  18. a b c d Enzinna 2015.
  19. Öcalan 2016a, pp. 27; 35–36.
  20. Öcalan 2016b, pp. 122; 126–127.
  21. Öcalan 2008, pp. 31–32.
  22. a b c White 2015, pp. 126–149.
  23. Öcalan 2008, p. 32.
  24. Öcalan 2016a, p. 30–31.
  25. Öcalan 2016b, p. 124–125.
  26. Öcalan 2008, pp. 1–46.
  27. a b Dirik3 2016, chpt. 3.
  28. Öcalan 2016a, p. 24.
  29. Öcalan 2016b, p. 121.
  30. a b c Malik 2019.
  31. Biehl 2012.
  32. Öcalan 2016a, pp. 33–34.
  33. Öcalan 2016b, p. 126.
  34. Öcalan 2016a, p. 36.
  35. a b Pluto 2016.
  36. a b Krajeski 2019.
  37. a b Marcus 2020.
  38. Weissheimer 2013.
  39. Nadai & Tavares 2018.
  40. Buzetto 2004.
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  43. a b c Öcalan 2008, pp. 28–30.
  44. OPúblico 2003.
  45. BBCNews 2003.
  46. Öcalan 2016a, p. 9.
  47. Bookchin 2006.
  48. Bookchin 2007.
  49. Stokols 2018, p. 33.
  50. Öcalan 2008, p. 40.
  51. APA 2006.

Ligações externas

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