Conceição dos Bugres – Wikipédia, a enciclopédia livre

Conceição Freitas da Silva (Povinho de Santiago, Rio Grande do Sul, 8 de dezembro de 1914Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 1984), popularmente conhecida como Conceição dos Bugres, foi uma escultora brasileira de origem indígena reconhecida como uma das maiores artesãs do Centro-Oeste brasileiro, em especial, do estado do Mato Grosso do Sul.[1][2][3][4] A arte de Conceição se baseou no tema único de figuras indígenas denominadas "Bugres". Suas típicas esculturas em madeira são consideradas os artefatos mais representativos da arte, cultura e identidade sul-mato-grossense.[5][6][7]

Devido a sua importância, seu nome estampa a premiação anual da Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul às pessoas e associações artesãs de destaque do artesanato regional: a medalha Conceição dos Bugres, considerada o "Oscar dos artesãos" no estado.[8][9][10][11]

A noção do bugre utilizado por Conceição para nomear a si mesma e suas esculturas é uma ressignificação do termo. Na arte de Conceição, o "Bugre" se tornou ícone cultural.[2][4]

No ano de 2021, o trabalho de Conceição dos Bugres recebeu, pela primeira vez, uma exposição monográfica em um Museu.[3]

Biografia[editar | editar código-fonte]

Conceição Freitas da Silva nasceu no dia 8 de dezembro de 1914, na localidade de Povinho de Santiago no estado brasileiro do Rio Grande do Sul. A família de Conceição migrou para o Mato Grosso do Sul por conta da perseguição dos bugreiros aos povos indígenas, relacionada à onda de imigração europeia para o Sul do Brasil no início do século XX. Aos 6 anos de idade passou a morar em Ponta Porã, cidade de fronteira com o Paraguai. Depois disso, mudou-se para a capital do estado, Campo Grande, no ano 1957.[12]

Um dos filhos de Conceição, o pintor Ilton Silva, também é reconhecido como um dos grandes artistas do estado.[13]

Na década de 1960, Ilton apresentou o trabalho de sua mãe, Conceição, ao artista plástico Humberto Espíndola e à produtora cultural Aline Figueiredo.[2] Fundadores da Associação Mato-Grossense de Artes (AMA), Espíndola e Figueiredo são figuras importantes da cena cultural do Mato Grosso do Sul. Eles se tornaram seus primeiros admiradores e divulgadores.[14]

Na década de 1970, já com mais de 50 anos, Conceição teve seu trabalho reconhecido e integrou importantes exposições regionais e nacionais.[12] Entretanto, essa visibilidade não se converteu em ganhos financeiros.[15]

Conceição faleceu pobre no ano de 1984.[12][15]

Descendentes[editar | editar código-fonte]

Ao longo de sua vida, Conceição ensinou sua técnica de trabalho a seus descendentes. Após seu falecimento, o trabalho de escultura dos Bugres foi continuado por seu marido, Abílio Freitas da Silva, e seu filho Ilton Silva. Depois disso, os Bugres passaram a ser feitos por seu neto, Mariano Antunes Cabral Silva, que assumiu as esculturas dando continuidade à produção.[16]

Os Bugres de Conceição[editar | editar código-fonte]

Os chamados "Bugres" ou "Bugrinhos" de Conceição são esculturas de figuras humanas de explícitos traços indígenas. Geralmente esculpidos em madeira com golpes secos e retos de facão, são recobertos com cera de abelha e têm os cabelos e os detalhes do rosto tingidos em preto de carvão. Alguns poucos exemplares são feitos em pedra-sabão e arenito.[1][15] Entretanto, o material original das esculturas de Conceição foi a cepa de mandioca.[1]

Origem e criação[editar | editar código-fonte]

Em entrevista, no ano de 1979, Conceição contou sobre a origem de seus famosos Bugres:

“Um dia, me pus sentada embaixo de uma árvore. Perto de mim tinha uma cepa de mandioca. A cepa de mandioca tinha cara de gente. Pensei em fazer uma pessoa e fiz. Aí a mandioca foi secando e foi ficando parecida com uma cara de velha. Gostei muito, depois eu passei para a madeira” [1]

Para Conceição, o formato das esculturas já existia antes mesmo do trabalho de escultura começar: ela reproduzia a forma que a madeira desejava, humanizando-as.[3][12] Dava vida a suas esculturas seguindo a sabedoria da madeira. Quando perguntada por que esculpia, ela respondeu "Faço para ter a companhia delas".[3]

Conceição possuía uma relação maternal com suas criações. Ela procurava personalizar suas esculturas, muitas vezes dando nomes a elas. Distinguia, por vezes, alguns exemplares como “índios mansos”, que dizia ser seres tranquilos e, por outras, alguns como “negrinhos”, com o biotipo dos descendentes africanos. Ela considerava este último tipo amuletos e presenteava aos amigos, num ato de dádiva.[12]

Técnica[editar | editar código-fonte]

O trabalho de escultura dos Bugres elaborado por Conceição é um processo repetitivo e com golpes de machado precisos. A escultora dava forma humana às toras, criando incisões e depressões a fim de sugerir pernas, braços e olhos. A fisionomia das esculturas é, no geral, sempre a mesma: indígena.[12][15]

"Algumas das características centrais de suas peças, como o corpo roliço, a posição vertical e a cabeça chata, derivam do formato original da madeira e de uma visão particular da artista sobre a aparência de seus índios" [17]

Apesar de apresentar um padrão, cada uma de suas esculturas é dotada de uma personalidade singular. As diferenças entre as peças são distinguíveis em modificações sutis e apuradas na forma e expressão delas, o que revela a excelência da artista.[15]

Críticos de arte apontam para a proximidade da estética do trabalho de Conceição com as esculturas de pedra Moai da Ilha de Páscoa, com a arte egípcia, com os totens dos kadiwéus e com a pintura Abaporu, de Tarsila do Amaral.[12] Há também relação com os ex-votos o nordeste brasileiro e e as aproximações com o minimalismo de Brancusi.[15]

Interpretações[editar | editar código-fonte]

O termo “bugre” foi questionado por ser, normalmente, pejorativo. Entretanto, levando em consideração a definição do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, "bugre" é a “designação genérica dada ao índio, especialmente o bravio e/ou guerreiro, por extensão, rude e grosseiro”.[15] Segundo Miguel Chaia, a adoção da noção do bugre pela artista para nomear tanto a si mesma, quanto suas esculturas, remete a sua origem étnica e perseguição sofrida quando criança, pelos chamados bugreiros. Na arte de Conceição, o termo "bugre" designou os indígenas combatidos, perseguidos e afastados do seu território.[12]

Importância paradoxal[editar | editar código-fonte]

Foi a primeira escultora do estado a ser reconhecida nacionalmente.[13] Ao lado de Lídia Baís é um dos nomes fundamentais da arte sul-mato-grossense e, também, um dos mais recorrentes nas retrospectivas celebradas pelo Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul (MARCO). A diferença entre elas reside no fato de que Baís se situa no campo da arte dita mais erudita e Conceição se consagra na arte popular.[18]

Os Bugres são descritos como os "mais fortes símbolos da iconografia popular identitária de Mato Grosso do Sul".[13] A trajetória das esculturas de características indígenas como artefato de grande importância cultural para a sociedade sul-mato-grossense têm sido objeto de estudo, uma vez que o estado é reconhecido por atitudes coletivas pró-agronegócio e anti-indígena.[5][6]

Estudos acadêmicos da década de 2010 defendem que Conceição era uma artista indígena. Além disso, relacionam as esculturas dos Bugres com a condição política e social na qual se encontram os povos indígenas nas zonas de fronteira do Brasil com a Bolívia e o Paraguai: "esculpidos a machado",[19] na falta de políticas estatais específicas para defesa de seus direitos.[4][12]

Apagamento[editar | editar código-fonte]

Apesar do notório reconhecimento de sua importância para arte do sul-mato-grossense, a trajetória de Conceição dos Bugres sofreu um processo de apagamento. São poucas de suas obras em acervos públicos, sendo os acervos do Museu Afro Brasil e do Itaú Cultural exceções a essa regra. A maior parte dos Bugres integram coleções particulares.[15]

Documentário[editar | editar código-fonte]

No ano de 1979, o cineasta Cândido Alberto da Fonseca realizou um documentário sobre Conceição dos Bugres.[2] Parte dos negativos da filmagem se deterioraram com o tempo e o curta-metragem foi, por muito tempo, dado como perdido. Entretanto, em 2016 ele foi restaurado e, a partir disso, cotado à patrimônio do Estado do Mato Grosso do Sul.[20]

Exposições[editar | editar código-fonte]

1971

  • Galeria Ibeu de Copacaba. "5 Artistas de Mato Grosso" (Rio de Janeiro)[21]

1972

  • Galeria da Colectio."Arte/Brasil/Hoje: 50 anos depois"(São Paulo)[22]

1974

  • Fundação Bienal de São Paulo. "Bienal 74". (São Paulo)[23]

2001

  • Centro Cultural Light. "Expressão Popular" (Rio de Janeiro)[24]

2004

  • Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul (MARCO): “Bugres: Conceição e sua gente”. (Campo Grande)[25]
  • Estação São Paulo. "Forma, Cor e Expressão: uma coleção de arte brasileira". (São Paulo)[26]

2021

  • Museu de Arte de São Paulo (MASP): “Conceição dos Bugres: tudo é da natureza do mundo”[7]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. a b c d Figueiredo, Aline. Artes plásticas no Centro-Oeste. Cuiabá: UFMT, 1979.
  2. a b c d Instituto Itaú Cultural. «Conceição dos Bugres». Enciclopédia Itaú Cultural. Consultado em 26 de maio de 2021 
  3. a b c d Oliva, Fernando; Carneiro, Amanda (2021). «Conceição dos Bugres: Tudo é da natureza do mundo». MASP. Consultado em 27 de maio de 2021. Cópia arquivada em 20 de maio de 2021 
  4. a b c Nolasco, Edgar Cézar (2009). «BUGRES subalternus». CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS (1). ISSN 1984-7785. Consultado em 26 de maio de 2021 
  5. a b Amizo, Isabella Banducci (2018). Poética dos bugres: uma incursão sobre arte, identidade e o outro. Outras Letras.
  6. a b Marin, Tatiana (29 de janeiro de 2019). «"Poética dos Bugres" traz à luz o nome de Conceição como identidade de MS». Campo Grande News. Consultado em 26 de maio de 2021 
  7. a b Medeiros de Lima, Karina (21 de maio de 2021). «Conceição dos Bugres, "orgulho para a cultura sul-mato-grossense", tem sua obra exposta no Masp». Fundação de Cultura. Consultado em 26 de maio de 2021 
  8. Agência de Notícias ALEMS (19 de março de 2013). «Medalha Conceição dos Bugres é entregue a artesãos...». Site Oficial da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Consultado em 26 de maio de 2021 
  9. Agência de Notícias da ALEMS (26 de março de 2015). «Assembleia entrega medalha Conceição dos Bugres a ...». Site Oficial da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Consultado em 26 de maio de 2021 
  10. Agência de notícias da ALEMS (16 de março de 2017). «ALMS reconhece trabalho de artesãos com Medalha Co...». Site Oficial da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Consultado em 26 de maio de 2021 
  11. Agência de Notícias da ALEMS (21 de março de 2018). «Reconhecimento aos artesãos marca a entrega da Med...». Site Oficial da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Consultado em 26 de maio de 2021 
  12. a b c d e f g h i Chaia, Miguel (2017). Conceição dos Bugres: o índio na estética mínima de Conceição. São Paulo: Galeria Estação.
  13. a b c Espíndola, Humberto. «Histórico das Artes Visuais no Estado». www.marco.ms.gov.br. Consultado em 26 de maio de 2021 
  14. Agência de Notícias da ALEMS (15 de março de 2013). «Medalha Conceição dos Bugres homenageará artesãos ...». Site Oficial da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Consultado em 25 de maio de 2021 
  15. a b c d e f g h «Conceição dos Bugres | MASP». DASartes. 11 de maio de 2021. Consultado em 27 de maio de 2021 
  16. Agência de Notícias ALEMS (19 de fevereiro de 2013). «Medalha Conceição dos Bugres homenageará artesãos». Site Oficial da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Consultado em 25 de maio de 2021 
  17. Tirapeli Percival. Arte Popular. São Paulo: Companhia Editora Nacional, v. 5, 2006.
  18. Oliveira, Emerson Dionisio Gomes (2015). Marco: dimensões de um acervo. Anais do 24° Encontro ANPAP. Compartilhamentos na Arte: Redes e conexões.
  19. Nolasco, Edgar Cézar (31 de dezembro de 2017). «Corpos Bugrescos Esculpidos a Machado». RELACult - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade. ISSN 2525-7870. doi:10.23899/relacult.v3i3.485. Consultado em 26 de maio de 2021 
  20. Torres, Thailla. «Documentário sobre Conceição é recuperado e pode se tornar patrimônio de MS». Campo Grande News. Consultado em 26 de maio de 2021 
  21. Instituto Itaú Cultural. «5 Artistas de Mato Grosso (1971 : Rio de Janeiro, RJ)». Enciclopédia Itaú Cultural. Consultado em 26 de maio de 2021 
  22. Instituto Itaú Cultural. «Arte/Brasil/Hoje: 50 anos depois». Enciclopédia Itaú Cultural. Consultado em 26 de maio de 2021 
  23. Instituto Itaú Cultural. «Bienal Nacional 74». Enciclopédia Itaú Cultural. Consultado em 26 de maio de 2021 
  24. Instituto Itaú Cultural. «Expressão Popular (2001 : Rio de Janeiro, RJ)». Enciclopédia Itaú Cultural. Consultado em 26 de maio de 2021 
  25. Instituto Itaú Cultural. «Bugres: Conceição e sua gente (2004 : Campo Grande, MS)». Enciclopédia Itaú Cultural. Consultado em 26 de maio de 2021 
  26. Instituto Itaú Cultural. «Forma, Cor e Expressão: uma coleção de arte brasileira (2004 : São Paulo, SP)». Enciclopédia Itaú Cultural. Consultado em 26 de maio de 2021 

Ligações externas[editar | editar código-fonte]