Xadrez e religião – Wikipédia, a enciclopédia livre

Cardeais jogando xadrez, pintura de Max Barascudts (1900)

O xadrez e a religião possuem uma longa relação na qual o primeiro sofreu influências em vários momentos de sua história. Em diversas ocasiões, a prática do xadrez foi proibida pelos sacerdotes do islamismo, catolicismo, judaísmo e protestantismo sob a justificativa de que o xadrez era um jogo de azar e que atrapalhava a prática da religião em alguns aspectos.

Inicialmente sob domínio islâmico, a primeira alteração significativa do jogo foi a retirada dos dados para movimento das peças que eram utilizadas nos precursores do xadrez como o chaturanga. A abstração do desenho das peças de xadrez por figuras estilizadas também ocorreu sob domínio islâmico, embora não tenha sido amplamente praticada. Lentamente, a prática do xadrez foi permitida pelo clero e já no século XIII foram escritas as primeiras moralidades, utilizando o xadrez como metáfora para o ensino de ética e moral.

Na Idade Média, a forte presença da igreja influenciou a substituição da peça não ortodoxa Fil - de pouco significado para os europeus - pelo Bispo, de modo que retratar melhor a importância da igreja na época. A ampliação dos poderes da Rainha coincidiu com o desenvolvimento da Mariologia e a atitudes em relação às mulheres. Países católicos como Espanha, Itália e França optaram por utilizar os vernáculos associados a Nossa Senhora enquanto que os países protestantes como Alemanha e Inglaterra optaram pelo termo secular Rainha. As regras de promoção do peão à Dama também foram reguladas pela Igreja católica, de modo a impedir a presença de duas damas sobre o tabuleiro uma vez que contraria a doutrina da fé católica.

Ainda no século XX, algumas religiões radicais como as praticadas no Irã e no Afeganistão dos Talibãs, condenavam a prática do xadrez, o que, via de regra, não era estritamente cumprido por seus praticantes, assim como em outros momentos da história.

Domínio islâmico[editar | editar código-fonte]

Ver artigo principal: Xadrez na Arábia

Quando os árabes dominaram a Pérsia em 651 o profeta Maomé já havia falecido, o que provocou um longo debate entre os teólogos islâmicos sobre a legalidade da prática do jogo. A controvérsia era na interpretação do capítulo 5 do Corão, livro sagrado do islamismo, que afirma[1]:

Os teólogos sunitas interpretaram que este banimento de ídolos se referia a todas as formas de representação de homens e animais, o que incluia pinturas, esculturas e peças de xadrez. Apesar da interpretação xiita ser restrita a ídolos religiosos somente, a interpretação sunita prevaleceu e a situação foi contornada com a confecção de peças abstratas. Outras observações deviam ser cumpridas, de modo que a prática do xadrez não atrapalhasse os deveres religiosos, o que incluía não ser praticado por dinheiro, não levar a disputas ou a linguajar impróprio. Apesar disso, algumas interpretações mais radicais classificaram o xadrez como haram, o que significava que o jogo era proibido e sua prática merecedora de castigo. Esta visão radical era ocasionalmente adotada por califas o que levava à destruição de peças e tabuleiros, embora nem todos o fizessem.[1][4][5] O bisneto de Maomé, Ali ibne Huceine, costumava jogar xadrez com sua família.[6]

Apesar da desaprovação em sua prática em 725 por Solimão ibne Iaxar, o jogo era popular entre os califas, especialmente quando a capital foi transferida para Bagdá em 750 e os melhores jogadores de xadrez foram levados juntos. O califa Almadi escreveu uma carta para os líderes religiosos de Meca para extinguir a prática do xadrez e jogos com dados em 780 mas faleceu, e seu sucessor Harune Arraxide era um ávido enxadrista. Em 810, os melhores jogadores do mundo eram conhecidos e todos eram patronados por poderosos califas.[7]

Chegada na Europa[editar | editar código-fonte]

Ver artigo principal: Xadrez na Europa
Mantido em xeque, pintura de Georges Croegaert

Por volta do século X o xatranje foi introduzido na Europa pelos árabes, através da conquista da Espanha, onde rapidamente se popularizou alcançando todo o continente europeu. As restrições religiosas à prática do xadrez continuaram a existir, apesar de continuarem a serem desobedecidas tanto pela corte européia quanto pelo clero. O primeiro registro literário em solo europeu, o poema Versus de Scachis, foi encontrado em um monastério na cidade de Einsiedeln, na Suíça. Este poema descreve o movimento das peças de xadrez e as regras do jogo. As regras de promoção do Peão não permitiam a escolha da dama caso esta não tivesse sido capturada. Esta regra visa manter a unicidade do Rei com somente uma esposa, preservando assim a monogamia real.[8]

Assim como entre os teólogos islâmicos, a prática do xadrez foi discutida e proibida entre os teólogos católicos apesar das divergências da interpretação da lei canônica. Uma carta entre Pedro Damião, bispo de Óstia, em aproximadamente 1061, para o papa eleito Alexandre II, discutia o assunto. Damião relata uma discussão com o bispo de Florença sobre a proibição ou não do xadrez segundo a lei canônica, do qual o bispo de Florença argumentava que o termo alea, palavra utilizada para designar jogos de azar no texto religioso, não incluía o xadrez. O assunto terminou com o bispo de Florença abandonando sua contestação e cumprindo penitência por ter jogado xadrez na noite anterior.[9][10]

Até aproximadamente o século XIV, a prática do xadrez foi proibida em várias ocasiões em diferentes países (França, Inglaterra e Alemanha) e religiões (judaísmo[9] e catolicismo[10]). Entretanto, isto não impedia a prática e aumento da popularidade do jogo como por exemplo o religioso boêmio Jan Hus (1369-1415), que em 1405 pediu por penitência por ter perdido o auto-controle durante uma partida em Praga.[7]

Lentamente, o jogo começou a ser aceito como um passatempo da nobreza. Em 1322, o rabino Calônimo ben Calônimo condenou o xadrez, porém seis anos mais tarde a lei judaica foi interpretada por alguns líderes de modo a que o xadrez pudesse ser praticado, desde que não por dinheiro. Em 1420, Werner von Orseln, Grande Mestre da Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, abandonou a proibição do jogo e fundamentou sua prática como um entretenimento apropriado para um cavaleiro.[7][9]

As moralidades[editar | editar código-fonte]

Ilustração do livro The Game and Playe of the Chesse

Por volta de 1250 surgiram os primeiros sermões que utilizavam o xadrez como uma metáfora para o ensino de ética e moral. Estes trabalhos eram denominados moralidades e se tornaram muito populares na época. A primeira obra do gênero foi Quaedam moralitas de scaccario per Innocentium papum (a Moralidade Inocente), que retrata o mundo como um tabuleiro, com as coisas em preto e branco, representando a vida e a morte, ou a glória e a vergonha. Inicialmente, sua autoria foi atribuída ao papa Inocêncio III (1163-1216), um prolífico escritor de sermões, entretanto, posteriormente, ela foi atribuída a um frade franciscano chamado João de Gales (1220-1290) que ensinava em Paris e Oxford e era um jogador de xadrez.[11][12]

Na segunda metade do século XIII, o monge dominicano Jacobus de Cessolis publicou os sermões Liber de Moribus Hominum et Officiis Nobilium Sive Super Ludo Scacchorum (Livro de costumes dos homens e deveres dos nobres ou o livro de xadrez), que conta o papel dos homens e suas funções dentro da sociedade medieval. O trabalho se tornou popular e foi traduzido para muitas outras línguas, sendo a primeira edição impressa em 1473 e a base do livro The Game and Playe of the Chesse de William Caxton, um dos primeiros livros impressos na língua inglesa. O historiador do enxadrismo Tassilo von Heydebrand und der Lasa encontrou uma cópia desde trabalho em quase toda biblioteca medieval italiana que visitou.[9] Santa Teresa de Ávila publicou o trabalho O caminho da perfeição onde utiliza o xadrez como uma metáfora para o progresso moral, e a Dama como exemplo seu exemplo de humildade, mesmo sendo o jogo desaprovado pela Ordem do Carmo. Santa Teresa foi nomeada a patronesse do xadrez espanhol em 1944 por este trabalho.[13]

Mariologia[editar | editar código-fonte]

O culto a Virgem Maria contribuiu para a mudança de atitudes em relação às mulheres durante a Idade Média. Embora as mulheres fossem algumas vezes vistas como a fonte do mal, foi Maria que como intermediadora de Deus foi uma fonte de refúgio para o homem.[14][15] Este processo coincidiu com a inclusão da Dama no xadrez entre os séculos XIII e XV, e ao amor cortês medieval. A canção Les Miracles de Nostre-Dame(Os milagres de Nossa Senhora, século XIII) de Gautier de Coincy retrata uma partida de xadrez onde Nossa Senhora substitui a peça e intercede a favor do homem para derrotar o demônio. A música relata a peça tendo poderes superiores a todas as outras do tabuleiro, apesar dos movimentos da Dama terem sido consolidados conforme a regra atual somente duzentos anos depois. Os países católicos como a Itália, França e Espanha utilizaram o vernáculo correspondentes de domina que evocam a "Nossa Senhora" enquanto que os países transformados pela reforma protestante como Alemanha e Inglaterra se recusaram a utilizar esta derivação que poderia sugerir um culto a Virgem Maria, optando por usar o termo secular "Rainha".[16]

No final do século XV, a moralidade Le Jeu des Eschés de la Dame (O jogo de xadrez da Dama) retrata a construção da feminidade como casta e pura, onde a mulher enfrenta Lúcifer numa partida e o vence. O texto pontua cada tentação que a Dama encontra e a defesa que a religião proporciona a ela.[17]

Restrições na Rússia[editar | editar código-fonte]

Ver artigo principal: Xadrez na Rússia
Cena da vida na Rússia do Czar jogando xadrez (1865) por Viatcheslav grigorievitch Schwarz

Desde o início da história do xadrez a Igreja Ortodoxa Oriental condenava a prática do jogo, associando-o a heresias e bruxarias sendo o primeiro registro datado do século IX no Nomôcano do patriarca Fócio, onde ligava o jogo aos dados. No século XII, apesar do Imperador Aleixo I Comneno de Bizâncio ser um entusiasta do xadrez, o jogo era expressamente proibido pelos comentários escritos do monge Zonaras que foram traduzidos para compilações russas da lei canônica conhecida como Kormchaia proibindo o jogo entre o clero e os leigos. Um prelado do século XIII direcionado aos novos sacerdotes também proibia o jogo entre outras práticas como ler livros proibidos, usar amuletos e assistir a corridas de cavalos. Até aproximadamente o século XVIII, a prática do xadrez ainda era proibida entre os russos ortodoxos conservadores, mas eventualmente a igreja desistiu da proibição em função do grande interesse russo pelo jogo, assim como na Europa Oriental.[18][19]

Atualidade[editar | editar código-fonte]

Recentemente, a prática do xadrez ainda enfrentou a oposição da religião islâmica, a do Aiatolá Ruhollah Khomeini do Irã, que baniu o jogo do país entre 1979 e 1988, e a do mulá Mohammed Omar do movimento Talibã, que proibiu sua prática no Afeganistão junto a outras restrições, sob a alegação de serem "coisas impuras".[20] Khomeini mudou de ideia ao assumir o valor intelectual e educacional do xadrez e assinou um decreto religioso (fatwa) permitindo a prática contanto que não fosse por apostas e não atrapalhasse as orações obrigatórias e deveres. Omar entretanto não permitia a prática do xadrez durante seu regime, sendo os praticantes punidos com a prisão.[7]

Atribui-se aos Papa Leão X e XIII o fato de que seriam ávidos jogadores de xadrez,[21] entretanto, o mais famoso Papa a que se atribui esta prática é João Paulo II. Desde sua escolha para o papado, ele é citado como sendo um problemista e ávido jogador, tendo publicados pelo GM Larry Evans alguns de seus jogos e problemas datados de 1946. Uma pesquisa recente indica que tais partidas e problemas são falsamente atribuídos a João Paulo, muito embora este tenha reagido com bom humor a estas informações.[22]

Notas

  1. As pedras, aqui referidas, são as pedras do altar e qualquer prática idólatra ou supersticiosa é condenada.[3]

Referências

  1. a b Yalom (2004), p.7
  2. «Al Maida». Consultado em 4 de maio de 2010. Arquivado do original em 29 de setembro de 2009 
  3. «Al Maida#Nota». Consultado em 4 de maio de 2010. Arquivado do original em 1 de outubro de 2009 
  4. Yalom (2004), p.243
  5. Sunnucks (1976), p.414
  6. Reerink (2000), p.16
  7. a b c d Bill Wall (27 de setembro de 2002). «Religion and Chess» (em inglês). Consultado em 28 de abril de 2010. Arquivado do original em 28 de outubro de 2009 
  8. Yalom (2004), pp.15-18
  9. a b c d Sunnucks (1976), p.415
  10. a b Yalom (2004), p.29
  11. Giusti (2006), p.10
  12. «Earliest books of chess» (em inglês). Consultado em 29 de janeiro de 2010. Arquivado do original em 21 de janeiro de 2012 
  13. Yalom (2004), p.221
  14. Daughters of the church 1987 by Ruth Tucker ISBN 0310457416 page 168
  15. International Standard Bible Encyclopedia: K-P by Geoffrey W. Bromiley 1994 ISBN 0802837832 page 272
  16. Yalom (2004), p.107-122
  17. Weissberger, Barbara F. (2004). Isabel rules: constructing queenship, wielding power (em inglês). [S.l.]: University of Minnesota. ISBN 0816641641. Consultado em 4 de maio de 2010 
  18. Yalom (2004), p.176-177
  19. Johnson (2008), p.4
  20. Yalom (2004), p.8
  21. Winter, Edward. «Popes» (em inglês). Chess Notes. Consultado em 3 de junho de 2010 
  22. Lissowski, Tomasz (2000). «No Chess in Vatican». Chess History (em inglês). 4. Consultado em 3 de junho de 2010. Arquivado do original em 23 de junho de 2010 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

  • Giusti, Paulo (2006). História Ilustrada do Xadrez 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna. ISBN 857393517-0 
  • Sunnucks, Anne (1976). The Encyclopaedia of Chess (em inglês) 2ª ed. Inglaterra: St Martin Press. ISBN 0709146973 
  • Yalom, Marilyn (2004). The Birth of the Chess Queen (em inglês) 1ª ed. Inglaterra: HarperCollins. ISBN 978-0060090647