Vingança – Wikipédia, a enciclopédia livre

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Justiça e vingança divina perseguindo o crime por Pierre-Paul Prud'hon, c. 1805–1808

Vingança é cometer uma ação prejudicial contra uma pessoa ou grupo em resposta a uma queixa, seja ela real[1] ou percebida.[2] Francis Bacon descreveu a vingança como uma espécie de "justiça selvagem" que "ofende a lei e a tira do cargo."[3] A justiça primitiva ou justiça retributiva é frequentemente diferenciada de formas mais formais e refinadas de justiça, como justiça distributiva e julgamento divino.

História[editar | editar código-fonte]

Anúncio alemão de matar 2.300 civis no massacre de Kragujevac como retaliação por dez soldados alemães mortos. Sérvia ocupada pelos nazistas, 1941

As vendetas são ciclos de provocação e retaliação, alimentados por um desejo de vingança e realizados por longos períodos de tempo por grupos familiares ou tribais. Eles eram uma parte importante de muitas sociedades pré-industriais, especialmente na região do Mediterrâneo. Eles ainda persistem em algumas áreas, principalmente na Albânia, com sua tradição de gjakmarrja ou "vingança de sangue".[4] Durante a Idade Média, a maioria não considerava um insulto ou injúria resolvidos até que fosse vingado, ou, pelo menos, pago — daí o extenso sistema anglo-saxão de pagamentos de veregildo (literalmente, "homem-preço"), que atribuíam um certo valor monetário a certos atos de violência na tentativa de limitar a espiral de vingança codificando a responsabilidade de um malfeitor.

As vendetas de sangue ainda são praticadas em muitas partes do mundo, incluindo as regiões curdas da Turquia e em Papua-Nova Guiné.[5][6]

No Japão, honrar a família, clã ou senhor através da prática de assassínio por vingança é chamado de "katakiuchi" (敵討ち). Esses assassinatos também podem envolver os parentes de um infrator. Hoje, o katakiuchi é mais frequentemente substituído por meios pacíficos, mas a vendeta continua sendo uma parte importante da cultura japonesa.[7]

Bases filosóficas[editar | editar código-fonte]

A ética da vingança é acaloradamente debatida na filosofia. Alguns acreditam que ela é necessária para se manter uma sociedade justa. Em algumas sociedades, se acredita que o mal infligido deve ser maior do que o mal que originou a vingança, como forma de punição. A filosofia de "olho por olho" citada no Velho Testamento da Bíblia (Êxodo 21:24) tentou limitar a retaliação, igualando-a à agressão original, para evitar uma série de ações violentas que escalassem rapidamente e saíssem do controle. Outros argumentam contra a vingança alegando que se assemelha à falácia de que "Dois erros fazem um acerto". Alguns cristãos interpretam a passagem de Paulo "A mim a vingança; a mim exercer a justiça, diz o Senhor" (Epístola aos Romanos 12:19, na versão da Bíblia Sagrada da editora Ave Maria) como significando que apenas Deus tem o direito de praticar a vingança.

Sobre as bases morais, psicológicas e culturais da vingança, a filósofa Martha Nussbaum escreveu:

O senso primitivo do justo — notadamente constante de diversas culturas antigas a instituições modernas... — começa com a noção de que a vida humana... é uma coisa vulnerável, uma coisa que pode ser invadida, ferida, violada de diversas maneiras pelas ações de outros. Para esta agressão, a única cura que parece apropriada é a contra-agressão, igualmente deliberada, igualmente grave. E, para equilibrar a balança verdadeiramente, a retribuição deve ser exatamente, estritamente proporcional à violação original. Ela difere da ação original apenas na sequência temporal e no fato de que é a sua resposta em vez da ação original — um fato frequentemente obscurecido se há uma longa sequência de ações e contra-ações.

Psicologia social[editar | editar código-fonte]

Filósofos tendem a acreditar que punir e vingar são atividades muito diferentes:[8]

Aquele que pune racionalmente não o faz em função da transgressão, que agora está no passado, mas em nome do futuro, de modo que a transgressão não seja repetida por ele ou por outros que o vejam sendo punido.[9]

De fato, Kaiser, Vick, & Major (2004) apontam:

Uma importante implicação psicológica das várias tentativas de definir vingança é que não há uma maneira objetiva de determinar se um ato é movido ou não por vingança. Vingança é um rótulo que é atribuído baseado na percepção do observador sobre o ato. A vingança é uma inferência, não importa se os indivíduos que fazem a inferência são os próprios agressores, as partes agredidas, ou terceiros. Por a vingança ser uma inferência, vários indivíduos podem discordar sobre o ato ser ou não uma vingança.[10]

A crença na "hipótese do mundo justo" também é associada à vingança, pois o indivíduo pode se sentir motivado a procurar vingança como uma forma de restaurar a justiça.[11] Um crescente corpo de pesquisa revela que uma disposição vingativa está relacionada a condições ruins de saúde, como transtorno de estresse pós-traumático e morbidez psiquiátrica.[12]

Na arte[editar | editar código-fonte]

A vingança é um tema popular em muitas formas de arte. Alguns exemplos incluem a pintura "A vingança de Herodíade", de Juan de Flandes, e as óperas Don Giovanni e Le nozze di Figaro, de Wolfgang Amadeus Mozart. Na arte do Japão, a vingança é tema de várias xilogravuras que retratam os 47 rōnin por muitos artistas influentes e bem conhecidos, incluindo Utagawa Kuniyoshi. O dramaturgo chinês Ji Junxiang usou a vingança como tema central na sua peça "O órfão de Zhao";[13] ela mostra uma vingança familiar que se passa no contexto da moralidade confuciana e da estrutura social hierárquica.[14]

A vingança tem sido um tema popular na literatura. Exemplos incluem as peças Hamlet e Otelo, o Mouro de Veneza, de William Shakespeare; as novelas O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, e Carrie, de Stephen King; e o conto O Barril de Amontillado, de Edgar Allan Poe.

Na internet[editar | editar código-fonte]

O surgimento da internet criou novas formas de expressão da vingança.[15] A vingança de consumidor tem, como alvo, empresas.[16] As empresas têm, crescentemente, sofrido com críticas desfavoráveis de consumidores na internet.[17] Os sites de mídias sociais, como o Facebook, Twitter e YouTube, têm servido de plataforma para a vingança de consumidores.[15] A pornografia de vingança envolve a disseminação pública de vídeos e fotos íntimas da atividade sexual de alguém com a finalidade de causar vergonha.[18] A permissão de anonimato nos sites de pornografia de vingança encoraja esse tipo de comportamento.[19] Muitas vezes, a postagem fornece dados pessoais da vítima, inclusive suas conexões com contas de mídia social.[18] A origem da pornografia de vingança na internet está na criação, por Hunter Moore, em 2010, do site IsAnyoneUp, que difundia fotos de sua namorada nua.[19]

Em animais[editar | editar código-fonte]

Os seres humanos não são a única espécie que pratica a vingança. Animais como camelo, elefante, peixe, leão,[20] fulica,[21] corvo e muitas espécies de primatas (chimpanzé, Macaca, babuíno etc.) também a praticam. Os primatologistas Frans de Waal e Lesleigh Luttrellave realizaram numerosos estudos que evidenciaram a vingança em primatas. Eles observaram padrões de vingança em chimpanzés: se um chimpanzé A ajuda um chimpanzé B a derrotar um chimpanzé C, então este se sentirá inclinado a ajudar um inimigo do chimpanzé A a derrotá-lo. Os chimpanzés são uma das espécies em que mais foram notados comportamentos vingativos, devido a seu desejo por dominância. Estudos com espécies menos cognitivas, como peixes, evidenciaram que espécies menos intelectuais também exercem vingança.[22]

Função na sociedade[editar | editar código-fonte]

O psicólogo social Ian Mckee diz que o desejo pela manutenção do poder motiva o comportamento vingativo, como uma forma de impressionar as pessoas:

Pessoas que são mais vingativas tendem a ser aquelas mais motivadas à busca pelo poder, por autoridade e por status. Elas não querem prejudicar sua imagem.[23][24]

O comportamento vingativo tem sido encontrado na maioria das sociedades humanas.[25] Algumas sociedades encorajam a conduta vingativa.[26] Essas sociedades encaram a honra de grupos e indivíduos como um elemento fundamental. Segundo essa lógica, ao proteger sua reputação, o vingador se sentiria como se estivesse restaurando seu estado anterior de dignidade e justiça. De acordo com Michael Ignatieff,

Vingança é um profundo desejo moral de manter a fé nos mortos, de honrar sua memória assumindo sua causa onde eles a deixaram.[27]

Portanto, a honra pode se tornar um património cultural que passa de geração a geração. Sempre que é assumida, a família ou membros da comunidade que são afetados podem se sentir compelidos a retaliar contra o agressor para restaurar o "equilíbrio de honra" inicial. Este ciclo de honra pode se expandir ao trazer os membros familiares e a comunidade inteira da nova vítima para o novo ciclo vingativo, que pode durar gerações.[28]

Referências

  1. Daladier, Edouard (1995). Daladier, Jean, ed. «Prison Journal, 1940-1945». Westview Press, 1995. 63 páginas – via ISBN 0813319056, 9780813319056 
  2. «revenge | Definition of revenge in English by Lexico Dictionaries». Lexico Dictionaries | English. Consultado em 11 de julho de 2019. Arquivado do original em 11 de novembro de 2020 
  3. «Sir Francis Bacon "On Revenge"». rjgeib.com. Consultado em 8 de outubro de 2012. Cópia arquivada em 8 de outubro de 2012 
  4. "Peacemaker breaks the ancient grip of Albania's blood feuds Arquivado em 2016-11-23 no Wayback Machine". The Christian Science Monitor June 24, 2008
  5. "Blood feuds and gun violence plague Turkey's southeast Arquivado em 2019-11-29 no Wayback Machine". Reuters. May 5, 2009
  6. "Deadly twist to PNG's tribal feuds Arquivado em 2008-12-18 no Wayback Machine". BBC News. August 25, 2005
  7. Mills, D. E. (1976). «Kataki-Uchi: The Practice of Blood-Revenge in Pre-Modern Japan». Modern Asian Studies. 10 (4): 525–542. doi:10.1017/S0026749X00014943 
  8. Flew, Antony (1954). The Justification of Punishment. [S.l.]: Philosophy. 29 (111): 291–307. doi:10.1017/S0031819100067152. JSTOR 3748210 
  9. Platão. Protágoras. [S.l.: s.n.] pp. p. 324 
  10. Schumann, Karina (2010). The Benefits, Costs, and Paradox of Revenge. [S.l.]: Social and Personality Psychology Compass. 4 (12): 1193. doi:10.1111/j.1751-9004.2010.00322.x. 
  11. Cheryl R. Kaiser, S. Brooke Vick, e Brenda Major (2004). «A Prospective Investigation of the Relationship Between Just-World Beliefs and the Desire for Revenge After September 11, 2001» (PDF). Consultado em 9 de abril de 2020 
  12. Cardozo, Barbara (2000). "Mental health, social functioning, and attitudes of Kosovar Albanians following the war in Kosovo". [S.l.]: JAMA. 16 (5): 569–77. doi:10.1001/jama.284.5.569. PMID 10918702 
  13. Liu, Wu-Chi (1953). The Original Orphan of China. [S.l.]: Comparative Literature. 5 (3): 193–212. doi:10.2307/1768912. JSTOR 1768912 
  14. Shi, Fei (2009). Tragic Ways of Killing a Child: Staging Violence and Revenge in Classical Greek and Chinese Drama. [S.l.]: In Constantinidis, Stratos E. (ed.). Text & presentation, 2008. Jefferson: McFarland. pp. p. 175. ISBN 9780786443666 
  15. a b Obeidat, Zaid. Consumer Revenge Using the Internet and Social Media: An Examination of the Role of Service Failure Types and Cognitive Appraisal Processes. [S.l.]: Psychology & Marketing 
  16. Grégoire, Yany. A comprehensive model of customer direct and indirect revenge: understanding the effects of perceived greed and customer power. [S.l.]: Journal of the Academy of Marketing Science 
  17. Grégoire, Yany. How can firms stop customer revenge? The effects of direct and indirect revenge on post-complaint responses. [S.l.]: Journal of the Academy of Marketing Science 
  18. a b Langlois, G.; Slane, A. (2017). Economies of reputation: the case of revenge porn. [S.l.]: Communication & Critical/Cultural Studies. 14 (2): 120–138. doi:10.1080/14791420.2016.1273534 
  19. a b Stroud, S. R. (2014). The Dark Side of the Online Self: A Pragmatist Critique of the Growing Plague of Revenge Porn. [S.l.]: Journal of Mass Media Ethics. 29 (3): 168–183. doi:10.1080/08900523.2014.917976 
  20. Mills, M. G. L. (1991). Conservation management of large carnivores in Africa. [S.l.]: Koedoe. 34 (1): 81–90. doi:10.4102/koedoe.v34i1.417 
  21. Horsfall, J.A. Brood reduction and brood division in coots. [S.l.]: Animal Behaviour. 32: 216–225. doi:10.1016/S0003-3472(84)80340-1 
  22. McCullough, Michael (2008). Beyond Revenge : The Evolution of the Forgiveness Instinct. [S.l.]: Jossey-Bass. pp. pp. 79–85 
  23. Michael Price (junho de 2009). «Revenge and the people who seek it». Consultado em 8 de abril de 2020 
  24. Ian McKee, PhD (2008). Social Justice Research (Vol. 138, No. 2). [S.l.: s.n.] 
  25. Ericksen, Karen Paige; Horton, Heather (1992). Blood Feuds: Cross-Cultural Variations in Kin Group Vengeance. Behavior Science Research. 26 (1–4): 57–85. [S.l.: s.n.] doi:10.1177/106939719202600103 
  26. Richard, McClelland (2010). The Pleasures of Revenge. [S.l.]: The Journal of Mind and Behavior. 31 (3/4): 196. JSTOR 43854277 
  27. Brandon Hamber e Richard A. Wilson (1999). Symbolic Closure through Memory, Reparation and Revenge in Post-conflict Societies. [S.l.]: Johannesburg: Centre for the Study of Violence and Reconciliation 
  28. Helena Yakovlev-Golani (2012). "Revenge - the Volcano of Despair: The Story of the Israeli-Palestinian Conflict". [S.l.]: Exploring the Facets of Revenge. pp. p. 83 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

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