Talidade – Wikipédia, a enciclopédia livre

Talidade (tal + –idade = qualidade de tal; em inglês, suchness ou thusness) é um termo para o atributo definidor de uma coisa em si, tal qual ela é em sua essência.[1][2][3] Na filosofia ocidental, é uma forma de traduzir o neologismo poiotês/poiotêta de Platão, que foi popularizado como "qualitas" no latim em neologismo criado por Cícero e é hoje mais conhecido na filosofia como qualidade.[4] Conforme aparece no diálogo Teeteto:

"Não encontramos que eles dizem que o calor, a brancura ou qualquer coisa que você queira surge de alguma maneira como esta, a saber, que cada um desses se move simultaneamente com a percepção entre o elemento ativo e o passivo, e o passivo se torna percipiente, mas não a percepção, e o ativo se torna tal-e-tal (poion ti), mas não a talidade (poiotêta)? ... O elemento ativo não se torna talidade (qualidade essencial) calor, ou brancura. Ele se torna tal-e-tal (instância da qualidade): quente, ou branco - e assim por diante."

"Talidade" passou a ser um termo utilizado por Xavier Zubiri para definir o conteúdo qualificado intrínseco: "A realidade física da essência na ordem da talidade é aquilo segundo o qual a coisa é 'isto' e não o 'outro', ou seja, é a maneira de estar 'construída' a coisa real como 'tal'", mas que a talidade da essência é maior e além da coisa imanente: "por sua própria talidade, a essência tem uma função transcendental".[5]

No entanto, ele é mais amplamente utilizado no budismo como termo que traduz Tathata, principalmente nas linhagens maaiana, identificando a natureza fundamental do fenômeno ou a realidade última não dual e absoluta,[6][7][8] como sendo tal qual e apresentada na mente pura ou desperta (mente luminosa) que enxerga o conhecimento através de Prajña/Jñana, em oposição à ignorância e ilusão:[9] livre de vijñanas e discriminações egoicas; a percepção tal qual é relacionada também ao conceito de Mente-apenas (idealismo).[9]

Tathātā[editar | editar código-fonte]

Talidade
Nome chinês
Chinês: 真如
Em japonês
Kanji: 真如
Hiragana: しんにょ
Em coreano
Hangul: 진여
Em tibetano
Tibetano: དེ་བཞིན་ཉིད་
Em vietnamita
Quốc ngữ: chân như
Em sânscrito
sânscrito: तथाता

Tathātā (em sânscrito: तथाता, transl. tathātā; em páli: तथता; em tibetano: དེ་བཞིན་ཉིད་; chinês: 真如) é traduzido de várias formas como "talidade". É um conceito central no Maaiana,[10][11] tendo um significado particular no budismo Chan também. Paul J. Griffiths traduz o termo como "atualidade".[12] O sinônimo dharmatā também é frequentemente usado.

Enquanto vivo, o Buda se referiu a si mesmo como o Tathagata, que pode significar "Aquele que veio a tal" ou "Aquele que assim foi"[13] e interpretado corretamente pode ser lido como "Aquele que chegou à talidade". Tathata aparece canonicamente no Samyutta Nikaya como relacionado à natureza dos darmas (fenômenos) na originação dependente.[14][15]

Budismo Maaiana[editar | editar código-fonte]

O tathātā na tradição maaiana do leste asiático é visto como representando a realidade básica e pode ser usado para encerrar o uso de palavras. Uma escritura chinesa maaiana do século V, intitulada "Despertar da Fé do Mahayana", descreve o conceito mais completamente:

Na sua própria origem, a talidade é de si mesma dotada de atributos sublimes. Manifesta a mais alta sabedoria que brilha em todo o mundo, possui conhecimento verdadeiro e uma mente repousando simplesmente em seu próprio ser. É eterna, bem-aventurada, seu próprio ser e a mais pura simplicidade; é revigorante, imutável, livre... Por possuir todos esses atributos e ser privada de nada, é designada como o Útero do Tathagata e o Corpo do Dharma de Tathagata.[16]

É no Iogacara que ocorre uma elaboração do conceito de tathata, e Vasubandhu (fl. século IV-V), um de seus principais fundadores, considera-o como realidade última e que, diferente de Kant, a coisa-em-si é conhecível aos Budas.[17][18]

Brian Edward Brown identifica que no Ratnagotra (c. século III-V) Tathata é considerada a realidade absoluta como oculta e imanifesta em meio à contaminação (samala), mas que permanece com sua natureza própria (svabhavā) pura, retida até que seja manifestada como Nirmalā Tathata no processo chamado de purificação.[19] Ele também afirma que a transformação da consciência humana, cada vez mais em direção à sabedoria do Buda e menos da ignorância contaminada, torna o tathata não um conceito abstrato vago, mas algo realizável, concreto até mesmo em cada percepção da mente fenomênica.[20]

Segundo Kosho Yamamoto, a percepção do Buda é diferente no maaiana:[21]

O que é o Tathagata [Buda]? [...] Ele é eterno e imutável. Ele está além da noção humana de "é" ou "não é". Ele é Talidade [tathata], que é fenômeno e númeno, juntos. Aqui, a noção carnal do homem é sublimada e explicada do ponto de vista macrocósmico da existência de tudo e todos. E este Dharmakaya é ao mesmo tempo Sabedoria e Emancipação [moksha]. Nesta ampliação ontológica do conceito de existência do Corpo de Buda [buddhakaya], esse sutra e, consequentemente, Mahayana, difere do Buda do budismo primitivo.

D. T. Suzuki. renomado estudioso zen, destaca a importância da talidade das coisas em todas as suas interpretações filosóficas,[22][23] chegando a afirmar "Considero a talidade como sendo a base de toda experiência religiosa".[24] Ele equivale tathata a sunyata e diz que enxergar as realidades como elas são e apreciar a beleza das coisas é uma forma de tathata.[25] Ele também realizou uma tradução do Laṅkāvatāra Sūtra (c. século III-V), um dos mais importantes sutras maaiana sobre a natureza de Buda, em que se encontram dentre as definições de tathata a sua associação ao conhecimento verdadeiro das coisas:[9]

O conhecimento correto e a talidade, Mahamati, são indestrutíveis e, portanto, são conhecidos como Parinishpanna [conhecimento perfeito].
O conhecimento [relativo] (vijñana) ocorre onde há algo semelhante a um mundo externo; o conhecimento [transcendental] (jñana) pertence ao reino da Talidade.

R. H. Robinson, ecoando D. T. Suzuki, transmite como o Lankavatara Sutra percebe o dharmata através do portal de śūnyatā: "O Laṅkāvatāra sempre tem o cuidado de equilibrar Śūnyatā com Tathatā ou insistir em que quando o mundo é visto como śūnya, vacuidade, ele é apreendido em sua talidade".[26]

Budismo Chan[editar | editar código-fonte]

Nas histórias Chan, tathātā costuma ser melhor revelado no aparentemente mundano ou sem sentido, como perceber o modo como o vento sopra através de um campo de grama ou observar o rosto de alguém se iluminar enquanto sorri. De acordo com a hagiografia Chan, Gautama Buda transmitiu a consciência de tathātā diretamente para Mahākāśyapa no que veio a ser traduzido como o Sermão da Flor. Em outra história, o Buda perguntou a seus discípulos: "Quanto tempo dura a vida humana?" Como nenhum deles poderia oferecer a resposta correta, ele lhes disse: "A vida é apenas uma respiração".[27] Aqui podemos ver o Buda expressando a natureza impermanente do mundo, onde cada momento individual é diferente do último. Molloy afirma: "Sabemos que estamos experimentando a 'talidade' da realidade quando experimentamos algo e dizemos a nós mesmos: 'Sim, é isso; é assim que as coisas são'. No momento, reconhecemos que a realidade é maravilhosamente bela, mas também que seus padrões são frágeis e passageiros".[28]

O mestre Thiền Thích Nhất Hạnh escreveu: "As pessoas costumam considerar andar na água ou no ar um milagre. Mas acho que o verdadeiro milagre não é andar na água ou no ar, mas andar na terra. Todos os dias estamos envolvidos em um milagre que nem reconhecemos: um céu azul, nuvens brancas, folhas verdes, os olhos negros e curiosos de uma criança - nossos próprios olhos. Tudo é um milagre."[29] e que "No estado não iluminado, no entanto, o que tomamos como nosso mundo da realidade é apenas o mundo da discriminação (vikalpa), que se manifesta na base do tathata. Nesse mundo de discriminação, sujeito e objeto, representação e nome são revelados. Mas, ao penetrar nessas ideias por meios hábeis, voltamos ao mundo dos tathata e da verdadeira sabedoria. Isso não implica o desaparecimento do mundo dos fenômenos. O que desaparece é a discriminação-imaginação. O mundo dos fenômenos é revelado na verdadeira sabedoria sem ser velado por vikalpa. O mundo dos fenômenos é apenas um com o mundo de tathata, da mesma maneira que as ondas não podem ser separadas da água".[30]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. «Definition of SUCHNESS». www.merriam-webster.com (em inglês). Consultado em 17 de janeiro de 2020 
  2. Phainomenon: revista de fenomenologia. [S.l.]: Edições Colibri. 2003 
  3. Revista brasileira de filosofia. [S.l.]: Instituto Brasileiro de Filosofia. 1955 
  4. Chappell, Timothy D. J. (2005). Reading Plato's Theaetetus (em inglês). [S.l.]: Hackett Publishing. p. 136. ISBN 978-0-87220-760-8 
  5. Mora, José Ferrater (2001). Dicionário de filosofia. 4. (Q - Z). [S.l.]: Ed. Loyola. ISBN 978-85-15-02004-1 
  6. Gouveia, Ana Paula (9 de setembro de 2016). Introdução à Filosofia Budista. [S.l.]: Pia Sociedade de São Paulo - Editora Paulus. ISBN 978-85-349-4458-8 
  7. Cornu, Philippe (2 de junho de 2004). Diccionario Akal del Budismo (em espanhol). [S.l.]: Ediciones AKAL. ISBN 978-84-460-1771-4 
  8. Jr, Robert E. Buswell; Jr, Donald S. Lopez (24 de novembro de 2013). The Princeton Dictionary of Buddhism (em inglês). [S.l.]: Princeton University Press. ISBN 978-0-691-15786-3 
  9. a b c Suzuki, D. T (1932). Lankavatara Sutra: A Mahayana Text. Traduzido do Lankavatara Sutra sânscrito para o inglês, publicação de 1978.
  10. Goldwag, Arthur (2014). 'Isms & 'Ologies: All the movements, ideologies and doctrines that have shaped our world. [S.l.]: Knopf Doubleday Publishing Group. p. 206. ISBN 9780804152631. Most of its doctrines agree with Theravada Buddhism, but Mahayana does contain a transcendent element: tathata, or suchness; the truth that governs the universe 
  11. Stevenson, Jay (2000). The Complete Idiot's Guide to Eastern Philosophy. [S.l.]: Penguin. p. 144. ISBN 9781101158364 
  12. Griffiths, Paul J.; Griffiths, Professor of the Philosophy of Religion Paul J. (8 de setembro de 1994). On Being Buddha: The Classical Doctrine of Buddhahood (em inglês). [S.l.]: SUNY Press. ISBN 978-0-7914-2128-4 
  13. Oxford dictionary of Buddhism; P296
  14. Choong, Mun-keat (2000). The Fundamental Teachings of Early Buddhism: A Comparative Study Based on the Sutranga Portion of the Pali Samyutta-Nikaya and the Chinese Samyuktagama (em inglês). [S.l.]: Otto Harrassowitz Verlag. ISBN 978-3-447-04232-1 
  15. Thera, Nyanatiloka (28 de outubro de 2019). Buddhist Dictionary: Manual of Buddhist Terms and Doctrines (em inglês). [S.l.]: Pariyatti. ISBN 978-1-68172-096-8 
  16. Berry, Thomas (1996). Religions of India: Hinduism, Yoga, Buddhism. [S.l.]: Columbia University Press. p. 170. ISBN 978-0-231-10781-5 
  17. Gold, Jonathan C. (2018). Zalta, Edward N., ed. «Vasubandhu». Metaphysics Research Lab, Stanford University 
  18. Kochumuttom, Thomas A.; Vasubandhu (1989). A Buddhist Doctrine of Experience: A New Translation and Interpretation of the Works of Vasubandhu, the Yogācārin (em inglês). [S.l.]: Motilal Banarsidass Publishe. ISBN 978-81-208-0662-7 
  19. Brown, Brian Edward (1991). The Buddha Nature: A Study of the Tathāgatagarbha and Ālayavijñāna (em inglês). [S.l.]: Motilal Banarsidass Publ. ISBN 978-81-208-0631-3 
  20. Brown, Brian Edward (1991). The Buddha Nature: A Study of the Tathāgatagarbha and Ālayavijñāna (em inglês). [S.l.]: Motilal Banarsidass Publ. ISBN 978-81-208-0631-3 . p. 271.
  21. Yamamoto, Kosho (1975), Mahayanism: A Critical Exposition of the Mahayana Mahaparinirvana Sutra, Karinbunko
  22. Suzuki, Daisetz Teitaro (1953). Essays In Zen Buddhism (third Series). [S.l.: s.n.] 
  23. Suzuki, Daisetsu Teitaro. Selected Works of D.T. Suzuki.
  24. D. T. Suzuki, citado em Austin, James H. (24 de setembro de 2010). «Suchness and the Noumenon: An Allocentric Perspective». Zen-Brain Reflections (em inglês). [S.l.]: MIT Press. ISBN 978-0-262-26037-4 
  25. Suzuki, Daisetsu Teitaro (24 de novembro de 2014). Selected Works of D.T. Suzuki, Volume I: Zen (em inglês). [S.l.]: Univ of California Press. ISBN 978-0-520-95961-3 
  26. «Some Logical Aspects of Nagarjuna's System». Philosophy East & West. 6. 306 páginas 
  27. Tsai, Chih-Chung; Bruya, Brian (1994). Zen Speaks: Shouts of Nothingness. Anchor Books. [S.l.: s.n.] ISBN 978-0-385-47257-9 
  28. Molloy, Michael (23 de novembro de 2012). Experiencing the World's Religions: Sixth Edition. McGraw-Hill Higher Education. [S.l.: s.n.] ISBN 978-0-07-743490-8 
  29. Thích, Nhất Hạnh (5 de abril de 1996). The Miracle of Mindfulness: An Introduction to the Practice of Meditation. Beacon Press. [S.l.: s.n.] ISBN 978-0-8070-1244-4 
  30. Thich Nhat Hanh (1974). «Footprints of Emptiness», cap. V; In Zen Keys (1995). New York: Doubleday, p. 138-139. Citado em Berleant, Arnold (28 de novembro de 2011). Sensibility and Sense: The Aesthetic Transformation of the Human World (em inglês). [S.l.]: Andrews UK Limited. ISBN 978-1-84540-293-8. p. 32.