Secularidade – Wikipédia, a enciclopédia livre

Secularidade (qualidade ou característica de secular) é a condição de quem vive no século, isto é, entre as coisas do mundo e da vida. Opõe-se ao estado religioso, próprio dos que fizeram votos.

Segundo Boaventura de Sousa Santos, do ponto de vista da sociologia política, há distinção entre secularismo e secularidade. Secularismo, segundo ele, implica restringir a religião ao espaço privado exclusivamente. Já a secularidade supõe a permissão das expressões religiosas no espaço público como afirmação da própria liberdade de todos os cidadãos.[1]

Interpretação teórica cristã[editar | editar código-fonte]

A palavra "secular" vem do termo latino saeculāris, e e significa 'secular, relativo a século. No latim eclesiástico, significa "secular, profano, mundano, relativo ao mundo".

Teologicamente, o termo latino saeculum traduz o uso bíblico do grego antigo αἰών[2] (ciclo temporal da história da salvação), isto é, a "era", originalmente de sentido temporal, mais tarde estendida também à noção espacial.[3] Nesse sentido, o Antigo Testamento fala de séculos:[4] passado (tempo antes da Criação), presente (desde o pecado original até o Dia de Yahweh[5]) e futuros (após o Dia de Yahweh os "séculos dos séculos"). São Paulo, porém, introduz uma dilação: o Dia de Yahweh já começou com a Encarnação do Verbo, mas, antes da Parusia de Jesus Cristo, o século futuro só está presente de forma incoada:[6] Satanás detém o império no tempo presente, ainda que sua derrota esteja irremediavelmente decretada.[7] Por isso, o "século presente", na Bíblia, reveste-se às vezes de caráter pejorativo, especialmente em alguns textos juninos.

Posições dos católicos: secularidade absoluta ou relativa[editar | editar código-fonte]

O processo de secularização pode ser compreendido de dois modos: forte e brando. A secularização forte refere-se a uma afirmação da autonomia absoluta do homem. Tal secularidade seria uma reedição da visão prometeica do homem, presente entre os românticos, marxistas e nietzschianos. Essa visão está na base do laicismo.

A secularização branda, por sua vez, refere-se a uma afirmação da autonomia relativa do temporal. É uma desclericalização da visão de mundo, uma abertura ao diálogo tolerante. Nem sempre tal abertura foi realizada por alguns católicos no respeito à sua própria identidade cristã, ocasionando a reação de personagens ou grupos ditos tradicionalistas. Não obstante, a Igreja Católica defende o diálogo com a Modernidade sob a égide da liberdade religiosa.[8] Inclusive, viram grande desenvolvimento os movimentos laicos dentro da Igreja e espiritualidades compatíveis com a condição secular da franca maioria dos fiéis católicos, tanto leigos quanto clérigos seculares.[9]

Segundo a visão católica, as vertiginosas mudanças sociais dos últimos séculos criaram um campo amplíssimo de atuação, que constitui o mais radical desafio da história. Esse pluralismo necessita de instrumentos de união e diálogo para não cair na falsa disjunção público – privado. Nesse sentido, um patamar a ser conquistado é a autonomia integrada das esferas religiosa e estatal: a secularidade significa ser do mundo e responsabilizar-se por ele; mas a fé acolhida, pensada e vivida também faz-se necessariamente cultura. São Josemaria Escrivá de Balaguer, fundador da Opus Dei, sugeria: "Com a tua conduta de cidadão cristão, mostra às pessoas a diferença que há entre viver triste e viver alegre; entre sentir‑se tímido e sentir‑se audaz; entre agir com cautela, com duplicidade – com hipocrisia! —, e agir como homem simples de uma só peça. — Numa palavra, entre ser mundano e ser filho de Deus".[10] Assim, segundo a Igreja Católica, secularidade, é amor ao mundo redimido; mundanismo, porém, é amor ao pecado.[11]

Usos do conceito[editar | editar código-fonte]

A noção de secularidade tem sido usada de forma muito elástica, nem sempre de maneira precisa. Alguns exemplos:

  • Autoridade secular, qualquer tipo de autoridade não eclesiástica nem monacal;
  • Educação secular, escolas sem inspiração religiosa;
  • Estado secular, estado não teocrático, regido por leis civis emanadas pelo povo ou por seus representantes;
  • Cultura secular judaica, manifestações culturais dos judeus sem conotação religiosa;
  • Música secular, composta para uso profano, em oposição à música sacra;
  • Organizações seculares de abstinência, organizações de abstinência sem vínculo com organizações religiosas.

Referências

  1. 'Dilma tem grande insensibilidade social', diz guru da esquerda. Entrevista com Boaventura de Sousa Santos. Folha de S. Paulo, 26 de outubro de 2013.
  2. É o termo utilizado para traduzir o hebraico עוֹלַם ("era, futuro").
  3. Segundo o Bem-aventurado João Paulo II "à primeira vista, falar de "espaços" determinados em relação a Deus poderia gerar alguma perplexidade. Não está porventura o espaço, tal como o tempo, integralmente sujeito ao domínio de Deus? De fato, tudo saiu das suas mãos e não há lugar onde Ele não se possa encontrar: Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e quantos nele habitam. Ele a fundou sobre os mares e a consolidou sobre as ondas (Livro de Salmos, capítulo 24, versículo 1 e seguintes). Deus está igualmente presente em todos os cantos da terra, pelo que o mundo inteiro pode considerar-se templo da sua presença." "Mas, isto não impede que, tal como o tempo pode ser marcado pelos kairói, momentos especiais de graça, analogamente também o espaço possa ficar assinalado por particulares intervenções salvíficas de Deus. Aliás, esta intuição acha-se presente em todas as religiões, que têm não apenas templos mas também espaços sagrados, onde se pode experimentar o encontro com o divino de forma mais intensa do que habitualmente se verifica na imensidão do mundo" (Carta sobre a peregrinação aos lugares relacionados com a Historia da Salvação, n. 2, 1999).
  4. Sob a figura de um incontável número de séculos a Bíblia indica de um modo mais simples o conceito filosófico de eternidade. A eternidade é a fonte viva que alimenta o arroio do tempo; definiu-a Boécio como "possessão total e simultânea de uma vida que nunca termina". O Deus Eterno se dá como promessa de futuro — "Deus que É, que Era e que Vem" (Ap 4,8) — e se comunica com o homem para que se renove decidindo-se a avançar ao futuro, construindo-o no presente; em definitivo, com espirito profético.
  5. O Dia de Yahweh (Am 5,18.20) é no Antigo Testamento a incidência definitiva (Is 29,18-24), terrível (Jr 30,7) e salvífica (Jl 3,5) de Deus na história que inaugurará o tempo futuro; no Novo Testamento sofre a dilação entre a primeira e a segunda vinda de Cristo (cf. 2Pd 3,8).
  6. O tempo da paciência divina já se concluiu (Rm 3,26) e o tempo da salvação já está presente (2Cor 6,2). Mas ainda não chegou a consumação final (Hb 6,5). A Igreja está pois já na última hora, pelo que o tempo que resta se deve santificar, através dos Tempos Litúrgicos e da tradição dos jubileus (cf. BEM-AVENTURADO JOÃO PAULO II, Carta Ap. Tertio Millennio Adveniente, n. 10, 1994).
  7. Cf. Rm 12,2; 2Cor 4,4; 2Tm 4,9.
  8. Vide a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html) e a Declaração Dignitatis Humanae (http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651207_dignitatis-humanae_po.html), ambas do Concílio Vaticano II.
  9. Destaca-se, por exemplo, o espírito de santificação do trabalho proposto do São Josemaria Escrivá, fundador da Opus Dei.
  10. Sulco, n.º 306
  11. Cf. BENTO XVI, Homilia, 8/12/2005: "Manifesta-se em nós a suspeita de que uma pessoa que não peque de modo algum, no fundo, seja tediosa; que falte algo na sua vida: a dimensão dramática do ser autônomo; que faça parte do verdadeiro ser homem, a liberdade de dizer não, o descer às trevas do pecado e o desejar realizar sozinho; que somente então seja possível desfrutar até ao fim toda a vastidão e a profundidade do nosso ser homens, do ser verdadeiramente nós mesmos; que devemos pôr à prova esta liberdade também contra Deus, para nos tornarmos realmente nós próprios. Em síntese, pensamos que o mal no fundo seja bem, que dele temos necessidade, pelo menos um pouco, para experimentar a plenitude do ser. Julgamos que Mefistófeles, o tentador, tem razão, quando diz que é a força "que deseja sempre o mal e realiza sempre o bem" (J.W. v. Goethe, Fausto I, 3). Pensamos que pactuar com o mal, reservando para nós mesmos um pouco de liberdade contra Deus, em última análise, seja um bem, talvez até necessário. Contudo, quando olhamos para o mundo à nossa volta, podemos ver que não é assim, ou seja, que o mal envenena sempre, que não eleva o homem mas o rebaixa e humilha, que não o enobrece, não o torna mais puro nem mais rico, mas o prejudica e faz com que se torne menor."

Ver também[editar | editar código-fonte]