Ordália – Wikipédia, a enciclopédia livre

A prova da água (miniatura de 1513)

Ordálio ou ordália, também conhecida como juízo de Deus (judicium Dei, em latim), é um tipo de prova judiciária antiga, usada para determinar a culpa ou a inocência do acusado por meio da participação de elementos da natureza e cujo resultado é interpretado como um juízo divino.[1][2] O acusado submetia-se a torturas ou provas físicas que supostamente provariam a sua inocência caso não lhe causassem dano.[3]

De uso relativamente amplo em todo o mundo antigo, na Europa teve seu uso gradativamente diminuído, sobretudo por influência de alguns advogados, teólogos e de figuras da Igreja. Pedro Cantor chamou a atenção para a o fato de que a exigência da ordália equivalia a procurar um milagre, e assim violava a injunção bíblica: "'não tentarás o Senhor teu Deus".[4]

Segundo a lenda, Cunegunda de Luxemburgo, após ter sido acusada de adultério, provou a sua inocência caminhando sem danos sobre arados aquecidos ao rubro. (Baixo relevo na Catedral de Bamberg, cerca de 1010)

Em 1157, a prova do ferro quente foi ordenada pelo Concílio de Reims para todos os suspeitos de heresia. Em 1210, treze anos após a morte de Pedro Cantor, o bispo Henrique de Estrasburgo ordenou esse tratamento para cerca de 100 hereges.[4]

Alguns Papas a condenaram em diversos momentos, notadamente pela ação de Estêvão VI, em 887/888, de Alexandre II, em 1063,[5] e, mais prominentemente, de Inocêncio III, que no IV Concílio de Latrão em 1215 proibiu que o clero cooperasse com julgamentos por fogo e por água, substituindo-os pela compurgação (um misto de juramento e testemunho; ou, dando-lhe outra tradução, julgamento por juramento).[6] Os dois sistemas acabaram por ser gradualmente substituídos , a partir dessa mesma época, pelo julgamento por um júri.[7] Contudo o ordálio pela água continuou a ser usado no período da caça às bruxas.[8]

História[editar | editar código-fonte]

Os mais antigos registros da aplicação da ordália encontram-se no Código de Ur-Nammu (2100-2050 AC)[9] no Código de Hamurábi (1750 AC) , e no judaico Livro dos Números. Assim, o Código de Hamurabi estipulava que:

"Se um homem acusar outro homem de prática de bruxaria e não o provar, aquele sobre quem a acusação foi lançada deve submeter-se à divina ordália no rio (...). Se se afogar, o acusador tomará posse de sua casa; se o rio o declarar inocente, o acusador será morto e aquele que se submeteu à ordália deve tomar posse total da sua casa".[10]

Etimologia[editar | editar código-fonte]

A origem da palavra ordália é no latim ordalium ou, de acordo com Verstegan, do saxão, ordal e ordel, que, segundo Hicks, vem de Dael, julgamento, com o sentido de grande julgamento. Outros [nota 1]derivam do franco ou teutônio Urdela, que significa julgar. Lye, no seu dicionário de Anglo-Saxão, deriva a palavra desta língua, significando um tipo de julgamento onde não existe interferência das pessoas, sendo feita uma justiça absoluta, uma prerrogativa de Deus.[11]

Na Judeia[editar | editar código-fonte]

A versão mais antiga da ordália é citada na Bíblia, na lei chamada de águas da amargura,[11] no livro de Números,[12] onde a mulher, suspeita de adultério, deverá beber uma água possivelmente contaminada, e, se ela for adúltera, morrerá, porém, se for fiel, sobreviverá e terá filhos:

5.27 Depois que ela as tiver bebido [as águas] , se ela se manchou, e desprezou a seu marido, fazendo-se ré de adultério, será ela penetrada destas águas de maldição, inchar-lhe-á o ventre, e a sua coxa apodrecerá ; e virá a ser esta mulher um objeto de maldição, e um exemplo para todo o Povo.
5.28 Se ela porém não se manchou, não experimentará mal algum, e terá filhos.
5.29 Esta é Lei, que se observará no caso de ciúme.[12]

De acordo com Adam Clarke, a ordália, que foi praticada em diversas partes do mundo, tinha como origem possivelmente as águas da amargura.[11]

O autor cita como os rabinos descreveram a aplicação das águas da amargura na prática. A mulher era levada ao Sinédrio, onde tentava-se obter uma confissão, caso ela não confessasse, ela era vestida de preto, depois era despida da cintura para cima, e tinha que beber uma solução que fora feita com o papel onde havia sido escrita a lei, poeira do templo e alguma substância amarga.[11]

Não existe nenhum caso da aplicação da ordália durante o período da república dos hebreus, porque Deus havia feito esta lei tão terrível, que as pessoas conscientes do seu crime não apelavam para este julgamento, e, confessando o adultério, eram condenadas à morte.[11]

Na Pérsia e Índia[editar | editar código-fonte]

De acordo com o poeta persa Ferdusi, a ordália por fogo era usada pelos antigos persas; no seu poema épico Épica dos Reis é mencionado um caso.[11]

A ordália por fogo provavelmente, segundo Adam Clarke, se originou nos persas, porque, para eles, o fogo era um deus, ou a parte visível do Deus supremo; esta prática continuou comum entre os Hindus até os dias de hoje (sic).[nota 2][11]

De acordo com Warren Eastings, que citou Ali Ibrahim Khan, juiz chefe em Benares, a ordália por fogo ainda era praticada entre os hindus. Havia nove tipos de ordália entre os hindus: pela balança, pelo fogo, pela água, por veneno, pela cosha, pelo arroz, por óleo fervente, pelo ferro incandescente e por imagens.[11]

Na Grécia e Roma[editar | editar código-fonte]

Na Antígona, de Sófocles, uma pessoa acusada por Creonte de um crime se oferece para provar sua inocência pegando em ferro incandescente ou andando sobre o fogo. De acordo com Virgílio, os sacerdotes de Apolo na em Soracte tinham o costume de andar sobre carvão em brasa e não se queimarem. Grotius menciona a ordália por água na Bitínia, Sardenha e outros lugares.[11]

Europa Medieval[editar | editar código-fonte]

O primeiro relato de ordália na Europa está associado ao Rei Ina, e foi composto por volta do ano 700, denominado decisão por ferro incandescente e água. Agobardo, bispo de Lião, escreveu contra a ordália sessenta anos antes. A ordália foi mencionada no concílio de Trevers, em 895. A ordália não era praticada na Normandia até sua conquista, e foi provavelmente introduzida na Inglaterra durante o tempo de Ina, sendo introduzida no cógido de leis de Athelstan e Ethelred. A ordália por fogo era para os homens e mulheres nobres, e a ordália por água para os servos.[11]

Vários papas produziram bulas papais contra a ordália, e Henrique III proibiu a ordália no terceiro ano do seu reinado, em 1219.[11]

A ordália por batalha, supostamente, veio dos lombardos, que, vindos da Escandinávia, varreram a Europa. Este modo foi instituído por Frotha III, rei da Dinamarca na época do nascimento de Cristo, que ordenou que cada controvérsia fosse resolvida pela espada. Esta prática continou até o reinado de Cristiano III, rei da Dinamarca, em 1535. A partir dos países escandinavos a prática chegou à Inglaterra, e continuava, nos dias de Adam Clarke, a servir como base para a detestável prática dos duelos, uma relíquia da superstição bárbara.[11]

Duelos como uma forma de ordália[editar | editar código-fonte]

Os duelos supostamente tiveram um grande crescimento em 1527, quando houve o rompimento de um tratado entre o imperador Carlos V e Francisco I. Após algumas mensagens insultosas, eles decidiram resolver a disputa em um duelo, porém não conseguiram chegar a um acordo sobre as condições do duelo. O exemplo de dois personagens ilustres influenciou várias pessoas na Europa a fazerem o mesmo.[11]

Conclusão de Adam Clarke[editar | editar código-fonte]

Adam Clarke conclui sua exposição da ordália citando Dr. Henry. Este menciona os vários casos medievais onde pessoas foram expostas a ordália, colocando os braços em água fervente, segurando bolas incandescentes de ferro, caminhando sobre carvão em brasa, sem sofrer nenhuma injúria, porém ele não atribui estes milagres à providência divina, mas a um conluio entre o acusado e o padre encarregado de organizar a cerimônia, para enganar a população crédula.[11]

Notas

  1. Adam Clarke não especifica quem.
  2. Ou seja, 1831, quando Adam Clarke escreveu o texto.

Referências

  1. Dicionário Houaiss, verbete "ordálio".
  2. «Ordeals». WikiSource. Catholic Encyclopedia. 1913. Consultado em 21 de fevereiro de 2023 
  3. Dicionário da Língua Portuguesa. [S.l.]: Porto Editora. 2014. p. 1157 
  4. a b Innes, Brian (2016). The History of Torture. [S.l.]: Amber Books Ltd. p. 32 
  5. Denzinger, Henrici; Hünermann, Petrus, Enchiridion symbolorum, definitionum et declarationum de rebus fidei et morum (Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral), versão portuguesa brasileira em 2007, Paulinas, p. 243, 250 (Denzinger-Hünermann [*670] e [*695]) 
  6. Vold, George B., Thomas J. Bernard, Jeffrey B. Snipes (2001). Theoretical Criminology. Oxford University Press.
  7. Hamowy, Ronald (2003). «F. A. Hayek and the Common Law» (PDF). Cato Institute (Arq, em WayBack Machine). Cato Journal, Cato Institute, 23 (2)-: 247 
  8. Kirsch, Johann Peter (1913). «Ordeals». Catholic Encyclopedia. Consultado em 23 de fevereiro de 2023 
  9. Asimis, Andreas (2021). «Cap.2: Code of Ur-Nammu». Laws of Ancient World Vol. 1: Mesopotamia (Illustrated edition). [S.l.]: Strelbytskyy Multimedia Publishing 
  10. Roth, Martha T. (1995). Law collections from Mesopotamia and Asia Minor. [S.l.]: Society of Biblical literature. p. 81 
  11. a b c d e f g h i j k l m n «Commentary on the Bible by Adam Clarke: Numbers: Numbers Chapter 5». www.sacred-texts.com. Consultado em 21 de fevereiro de 2023 
  12. a b Figueiredo, Padre António Pereira de Figueiredo (1821). A Sancta Biblia contendo o Velho e Novo Testamento traduzidos em portuguez. [S.l.]: B.Bensley. p. 121 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]