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Humanae Vitae
(latim: Da vida humana)
Carta encíclica do papa São Paulo VI
''Sacerdotalis Caelibatus'' ''Redemptor Hominis''
Data 25 de julho de 1968
Assunto Controle da natalidade
Encíclica número 7 de 7 do pontífice
Texto em latim
em português

Humanae Vitae (em português: "Da vida humana") é uma encíclica escrita pelo São Paulo VI. Foi publicada a 25 de Julho de 1968. Inclui o subtítulo Sobre a regulação da natalidade, descreve a postura da Igreja Católica em relação ao aborto e outras medidas que se relacionam com a vida sexual humana. Segundo alguns geraria polêmica porque o Papa nela definiu que a contracepção, exclusivamente por meios artificiais, é proibida pelo Magistério da Igreja Católica.

Antecedentes[editar | editar código-fonte]

De alguma forma o tema já vinha sendo tratado pelos pontífices que haviam antecedido a São Paulo VI e vinha amadurecendo no âmbito da Igreja à medida que os métodos artificiais de controle da natalidade surgiam, e que variavam desde o aborto até à esterilização definitiva.

Na verdade a questão não era nova, sobre esta matéria o Papa Pio XI já havia publicado a encíclica Casti Connubii[1] (1930), invocando o antigo magistério da Igreja sobre o tema, por sua vez o Papa Pio XII[2] em pronunciamentos de 1944, 1951 e 1958 havia também abordado a matéria e o São João XXIII[3] na encíclica Mater et Magistra, dentre outros pontos, afirmava:

(192) Temos de proclamar solenemente que a vida humana deve ser transmitida por meio da família, fundada no matrimônio uno e indissolúvel, elevado para os cristãos à dignidade de sacramento. A transmissão da vida humana foi confiada pela natureza a um ato pessoal e consciente, sujeito, como tal, às leis sapientíssimas de Deus: leis invioláveis e imutáveis, que é preciso acatar e observar. Por isso, não se podem usar aqui meios, nem seguir métodos, que serão lícitos quando se tratar da transmissão da vida nas plantas e nos animais.
(193) A vida humana é sagrada: mesmo a partir da sua origem, ela exige a intervenção direta da ação criadora de Deus. Quem viola as leis da vida, ofende a Divina Majestade, degrada-se a si e ao gênero humano, e enfraquece a comunidade de que é membro.

De sua parte o próprio Concílio deu a diretriz na Constituição Gaudium et Spes, n. 50, inclusive tecendo encômios aos casais que, de modo responsável e prudente, se disponham "com grandeza de ânimo a educar uma prole numerosa".[4] Nesta Constituição, logo no primeiro capítulo da II parte o Concílio tratou da Promoção da dignidade do matrimônio e da família (ns. 47 a 52) e deixou expresso que se haveria, na regulação da natalidade, de recorrer à castidade conjugal:

Mas foi na Humanae vitae que a matéria foi tratada de modo orgânico e com método. A encíclica acabou por ser promulgada poucos anos depois da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, de 7 de dezembro de 1965, do Concílio Vaticano II e dentro do seu contexto.

Este documento é hoje considerado um marco sobre a visão da Família na Doutrina Social da Igreja e serviu de base para dois outros documentos sobre bioética e moral reprodutiva da Igreja: as Instruções Donum vitae e Dignitas personae publicadas já nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, respectivamente.

A Encíclica[editar | editar código-fonte]

Paulo VI publicou a encíclica Humanae Vitae em 25 de julho de 1968.

O documento recorda as características do amor conjugal como sendo humano, fiel, total e exclusivo, fecundo (9): "O matrimônio e o amor conjugal estão por si mesmos ordenados para a procriação e educação dos filhos. Sem dúvida, os filhos são o dom mais excelente do matrimônio e contribuem grandemente para o bem dos pais".[5]

A encíclica convida os esposos a respeitar a natureza e a finalidade do ato matrimonial:

11. Estes atos, com os quais os esposos se unem em casta intimidade e através dos quais se transmite a vida humana, são, como recordou o recente Concílio, "honestos e dignos"; e não deixam de ser legítimos se, por causas independentes da vontade dos cônjuges, se prevê que vão ser infecundos, pois que permanecem destinados a exprimir e a consolidar a sua união. De fato, como o atesta a experiência, não se segue sempre uma nova vida a cada um dos atos conjugais. Deus dispôs com sabedoria leis e ritmos naturais de fecundidade, que já por si mesmos distanciam o suceder-se dos nascimentos. Mas, chamando a atenção dos homens para a observância das normas da lei natural, interpretada pela sua doutrina constante, a Igreja ensina que qualquer ato matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida.

De fato ficou definido na encíclica e, portanto, no Magistério da Igreja Católica que é proibido recorrer a qualquer meio artificial para evitar a fecundação, sendo, no entanto, possível o uso, por motivos graves e justificados, de meios exclusivamente naturais de regulação da natalidade:

  • Aborto(14)
Em conformidade com estes pontos essenciais da visão humana e cristã do matrimônio, devemos, uma vez mais, declarar que é absolutamente de excluir, como via legítima para a regulação dos nascimentos, a interrupção direta do processo generativo já iniciado, e, sobretudo, o aborto querido diretamente e procurado, mesmo por razões terapêuticas.[6]
  • Esterilização(14)
É de excluir de igual modo, como o Magistério da Igreja repetidamente declarou, a esterilização direta, quer perpétua quer temporária, tanto do homem como da mulher.[7]
  • Métodos artificiais(14)
É, ainda, de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação. (…)
  • Malícia destes atos(14)

Segundo a encíclica não se pode invocar um eventual benefício indireto como consequência de um ato moralmente ilícito desejado diretamente:

É um erro, por conseguinte, pensar que um ato conjugal, tornado voluntariamente infecundo, e por isso intrinsecamente desonesto, possa ser coonestado pelo conjunto de uma vida conjugal fecunda.

Licitude do recurso aos períodos infecundos[editar | editar código-fonte]

  • Meios lícitos

E afirma, finalmente, que o único meio lícito de regular a natalidade é o recurso ao uso do matrimônio nos períodos infecundos:

Se, portanto, existem motivos sérios para distanciar os nascimentos, que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores, a Igreja ensina que então é lícito ter em conta os ritmos naturais imanentes às funções geradoras, para usar do matrimônio só nos períodos infecundos e, deste modo, regular a natalidade, sem ofender os princípios morais que acabamos de recordar.

Ficou desta forma fixada nos termos desta encíclica que a única forma lícita de se postergar o nascimento de um filho é o recurso à limitação das relações conjugais aos períodos infecundos, segundo o ciclo de fertilidade da mulher.

Com efeito é afirmado no documento: "A Igreja é coerente consigo própria, quando assim considera lícito o recurso aos períodos infecundos, ao mesmo tempo que condena sempre como ilícito o uso dos meios diretamente contrários à fecundação, mesmo que tal uso seja inspirado em razões que podem aparecer honestas e sérias."

Exceção[editar | editar código-fonte]

  • Licitude dos meios terapêuticos(15)

Esse posicionamento comportou uma única exceção: não é considerado ilícito "o recurso aos meios terapêuticos, verdadeiramente necessários para curar doenças do organismo, ainda que daí venha a resultar um impedimento, mesmo previsto, à procriação, desde que tal impedimento não seja, por motivo nenhum, querido diretamente."

Ou seja, é admitido que o tratamento de doenças do organismo possa ter como efeito colateral indesejado o impedimento da procriação, mas este impedimento não pode ser de forma alguma diretamente buscado e nem querido por nenhum motivo.

Consequência do uso dos métodos artificiais[editar | editar código-fonte]

O pontífice alerta para os riscos da perda do respeito mútuo do casal e de deterioramento do relacionamento, como consequência do uso dos métodos artificiais de contracepção:

17. Os homens retos poderão convencer-se ainda mais da fundamentação da doutrina da Igreja neste campo, se quiserem refletir nas consequências dos métodos da regulação artificial da natalidade. Considerem, antes de mais, o caminho amplo e fácil que tais métodos abririam à infidelidade conjugal e à degradação da moralidade. Não é preciso ter muita experiência para conhecer a fraqueza humana e para compreender que os homens — os jovens especialmente, tão vulneráveis neste ponto — precisam de estímulo para serem fiéis à lei moral e não se lhes deve proporcionar qualquer meio fácil para eles eludirem a sua observância. É ainda de recear que o homem, habituando-se ao uso das práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito pela mulher e, sem se preocupar mais com o equilíbrio físico e psicológico dela, chegue a considerá-la como simples instrumento de prazer egoísta e não mais como a sua companheira, respeitada e amada.

Atualidade[editar | editar código-fonte]

A doutrina explicitada por Paulo VI permanece atual no âmbito da Igreja Católica que, de modo não discrepante, nos documentos que a sucederam sobre o tema, neles repetiram e repisaram este posicionamento contrário ao aborto, à esterilização permanente ou temporária, e ao uso de qualquer meio artificial químico ou físico que seja impeditivo da fecundação como meio de regulação da natalidade.

Catecismo da Igreja Católica[editar | editar código-fonte]

O conteúdo desta encíclica, nesta parte, está incorporado no atual Catecismo da Igreja Católica nos seus §§ 2370 e 2399:

A continência periódica, os métodos de regulação da natalidade baseados na auto-observação e no recurso aos períodos infecundos estão de acordo com os critérios objetivos da moralidade. Estes métodos respeitam o corpo dos esposos, animam a ternura entre eles e favorecem a educação de uma liberdade autêntica. Em compensação, é intrinsecamente má "toda ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento de suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação"[8]
"À linguagem nativa que exprime a recíproca doação total dos cônjuges a contracepção impõe uma linguagem objetivamente contraditória, a do não se doar ao outro. Deriva daqui não somente a recusa positiva de abertura à vida, mas também uma falsificação da verdade interior do amor conjugal, chamado a doar-se na totalidade pessoal." Esta diferença antropológica e moral entre a contracepção e o recurso aos ritmos periódicos "envolve duas concepções da pessoa e da sexualidade humana irredutíveis entre si".[8]
A regulação da natalidade representa um dos aspectos da paternidade e da maternidade responsáveis. A legitimidade das intenções dos esposos não justifica o recurso a meios moralmente inadmissíveis (por exemplo, a esterilização direta ou a contracepção).[9]

Magistério de João Paulo II[editar | editar código-fonte]

João Paulo II confirmou os ensinamentos da Humanae vitae na Exortação Apostólica Familiaris consortio,[10] de 1981:

(29...) Desta maneira, na continuidade com a tradição viva da comunidade eclesial através da história, o Concílio Vaticano II e o magistério do meu Predecessor Paulo VI, expresso sobretudo na encíclica Humanae Vitae, transmitiram aos nossos tempos um anúncio verdadeiramente profético, que reafirma e repõe, com clareza, a doutrina e a norma sempre antigas e sempre novas da Igreja sobre o matrimónio e sobre a transmissão da vida humana.
Por isso, os Padres Sinodais declaram textualmente na última Assembleia: «Este Sacro Sínodo reunido em união de fé com o Sucessor de Pedro, sustenta firmemente o que foi proposto pelo Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 50 e, depois, pela encíclica Humanae Vitae, e em particular que o amor conjugal deve ser plenamente humano, exclusivo e aberto a nova vida (Humanae Vitae, 11 e cfr. 9 e 12)»(83)[11]

Em 1995 reiterou e aprofundou esta doutrina na encíclica Evangelium vitae, em que é reafirmado o valor da vida humana e da sacralidade da concepção:

Ao afirmarmos que os cônjuges, enquanto pais, são colaboradores de Deus Criador na concepção e geração de um novo ser humano, não nos referimos apenas às leis da biologia; pretendemos sobretudo sublinhar que, na paternidade e maternidade humana, o próprio Deus está presente de um modo diverso do que se verifica em qualquer outra geração "sobre a terra". Efectivamente, só de Deus pode provir aquela "imagem e semelhança" que é própria do ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração é a continuação da criação.(43)[12]

Magistério de Bento XVI[editar | editar código-fonte]

Em 10 de maio de 2008 Bento XVI, dirigindo-se aos participantes no Congresso Internacional promovido pela Pontifícia Universidade Lateranense, no 40.º aniversário da Encíclica Humanae Vitae, afirmou que:

"a verdade expressa na Humanae Vitae não muda, pelo contrário, à luz das novas descobertas científicas, o seu ensinamento torna-se mais atual e leva a refletir sobre o valor intrínseco que possui. A palavra chave para entrar com coerência nos seus conteúdos permanece aquela do amor" e que "Na encíclica Humanae vitae o amor conjugal é descrito no âmbito de um processo global que não se limita à divisão entre alma e corpo nem está sujeito apenas ao sentimento, muitas vezes fugaz e precário, mas assume a unidade da pessoa e a totalidade da partilha dos esposos que no acolhimento recíproco se oferecem a si próprios numa promessa de amor fiel e exclusivo que brota de uma opção genuína de liberdade."[13]

Críticas[editar | editar código-fonte]

Em 1968, Charles E. Curran escreveu uma crítica à Encíclica Humanae Vitae, na qual defendeu o direito à utilização de métodos de contracepção artificial. Sua declaração recebeu o apoio de mais de 600 teólogos e outros acadêmicos, incluindo Bernard Haring, David Tracy, Richard McBrien, Walter Burghardt, Raymond Collins, Roland Murphy e Bernard McGinn.[14]

Outro crítico da Humanae Vitae foi o Cardeal jesuíta Carlo Maria Martini que afirmou que a Encíclica excluiu muitas pessoas da Igreja, em especial, aquelas que mais precisavam de suas recomendações sobre a sexualidade humana.[15]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Casti Connubii 55. Mas nenhuma razão, sem dúvida, embora gravíssima, pode tornar conforme com a natureza e honesto aquilo que intrinsecamente é contra a natureza. Sendo o ato conjugal, por sua própria natureza, destinado à geração da prole, aqueles que, exercendo-a, deliberadamente o destituem da sua força e da sua eficácia natural procedem contra a natureza e praticam um ato torpe e intrinsecamente desonesto.
  2. Discurso de Pio XII, às mulheres parteiras Arquivado em 28 de novembro de 2007, no Wayback Machine., em 29 de outubro de 1951: "Pode-se ser dispensado dessa prestação positiva obrigatória, mesmo por muito tempo e até pela duração inteira do casamento, por motivos sérios como aqueles que não são raros achar no que se chama «indicação» médica, eugênica, econômica e social. De onde se segue que a observância das épocas infecundas pode ser lícita sob o aspecto moral, nas condições realmente indicadas. Entretanto, se não há, à luz de um julgamento razoável e justo, condições semelhantes, quer pessoais quer decorrentes de circunstâncias exteriores, a vontade de evitar habitualmente a fecundidade da união, mas continuando a satisfazer plenamente sua sensualidade, só pode vir de uma falsa apreciação da vida e de motivos estranhos às regras da sã moral". (Vis. em 26.set.2011).
  3. Mater et Magistra ns. 192 e 193. Sítio da Santa Sé. Vis. 17.out.2011.
  4. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Past. Gaudium et Spes, n. 50.
  5. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Past. Gaudium et Spes, n. 50.
  6. <Cf. Cathechismus Romanus Concilii Tridentini, pág. II, c. VIII; Pio XI, Enc. Casti Connubii, em AAS 22 (1930), pp. 562-564; Pio XII, Discorsi e Radiomessaggi, VI (1944), pp. 191-192; AAS 43 (1951), pp. 842-843; pp. 859-859; João XXIII, Enc. Pacem in Terris, 11 de abril de 1963, em AAS 55 (1963), pp. 259-260; Gaudium et Spes, n. 51.
  7. Cf. Pio XI, Enc. Casti Connubii, em AAS 22 (1930), p. 565; Decreto do Santo Ofício, 22 de fevereiro de 1940; em AAS 32 (1940); p. 73; Pio XII, AAS 43 (1951), pp. 843-844; AAS 50 (1958), pp. 734-935.
  8. a b Catecismo § 2370
  9. Catecismo § 2399
  10. Familiaris consortio Sítio da Santa Sé. Vis. 17.out.2011.
  11. Na Nota (83) da Exortação Familiaris Consortio consta: "Propositio 22; A conclusão do n. 11 da Enc. Humanae Vitae afirma: «Chamando os homens à observância das normas da lei natural interpretada por sua constante doutrina, a Igreja ensina que todo o acto matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida» («ut quilibet matrimonii usus ad vitam humanam procreandam per se destinatus permaneat»): AAS 60 (1968), 488."
  12. Evangelium vitae nº. 43. Sítio da Santa Sé. Texto oficial em português.
  13. «A sexualidade não pode transformar-se numa droga: Bento XVI». Consultado em 10 de maio de 2008. Arquivado do original em 1 de junho de 2008 
  14. 'Humanae Vitae' 25 Years Later, em inglês, acesso em 12 de julho de 2015.
  15. Martini: "Humanae Vitae" excluiu muitas pessoas da igreja Arquivado em 3 de março de 2016, no Wayback Machine., acesso em 18 de outubro de 2105.

Ligações externas[editar | editar código-fonte]