Complexo de vira-lata – Wikipédia, a enciclopédia livre

Complexo de vira-lata é uma expressão e conceito criada pelo dramaturgo e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, a qual originalmente se referia ao trauma sofrido pelos brasileiros em 1950, quando a Seleção Brasileira foi derrotada pela Seleção Uruguaia de Futebol na final da Copa do Mundo em pleno Maracanã. O Brasil só teria se recuperado do choque (ao menos no campo futebolístico) em 1958, quando ganhou a Copa do Mundo pela primeira vez.[1] O fenômeno também é referido como vira-latismo[2][3][4][5].

Para Rodrigues, o fenômeno não se limitava somente ao campo futebolístico:[6]

Origens[editar | editar código-fonte]

Redenção de Cam (1895), de Modesto Brocos y Gomes. Avó negra, filha mulata, genro e neto brancos: para o governo brasileiro da época, a cada geração o brasileiro ficaria mais branco.

A ideia de que o povo brasileiro é inferior a outros ou "degenerado" não é nova e data pelo menos do século XIX, quando o conde francês Arthur de Gobineau desembarcou em 1845 no Rio de Janeiro e chamou os cariocas de "verdadeiros macacos".[7]

Nas décadas de 1920 e 1930, várias correntes de pensamento digladiavam-se quanto a origem desta suposta inferioridade. Alguns, como Nina Rodrigues,[8] Oliveira Viana[8] e Monteiro Lobato proclamavam que a miscigenação era a raiz de todos os males e que a raça branca era superior às demais.[9]

Outros, como Roquette-Pinto, afirmavam que a inferioridade era um problema de ignorância, não de miscigenação[10] (tese recuperada recentemente por Humberto Mariotti). Manuel Bomfim também foi um notável contestador dessa tese em seu livro A América Latina: Males de Origem.[11]

Em 1903, Monteiro Lobato revela-se profundamente pessimista com o potencial do povo brasileiro, por ele assim definido:

Além da origem mestiça, os brasileiros sofreriam com o fato de viverem nos trópicos, onde o clima quente e úmido predisporia os habitantes à preguiça e à luxúria (outra tese cara na época, o determinismo geográfico, dizia que verdadeiras civilizações só podiam se desenvolver no clima temperado).

Todavia, quando Lobato publica Urupês em 1918 (onde retrata o "Jeca Tatu"), a elite brasileira caminhava para nomear outra causa para o "atraso" do país. Com a divulgação de estudos de saúde pública encomendados por Osvaldo Cruz, as más condições sanitárias vigentes no interior do país assumem a principal responsabilidade pela "falta de vigor" e pela "indolência" dos brasileiros. O sanitarismo entra na ordem do dia e o próprio Lobato se engaja no esforço de converter o Brasil num "grande hospital", nas palavras do médico Miguel Pereira. Esse engajamento atinge o ápice em 1924, quando Lobato publica a "história do Jecatatuzinho", utilizada como propaganda pelo Biotônico Fontoura. Nela, depois de curado "pela ciência", Jeca Tatu torna-se um cidadão exemplar e empreendedor, capaz até mesmo de desbancar a produção do próspero vizinho — um imigrante italiano.[13]

No campo científico[editar | editar código-fonte]

País conhecido por suas criações inventivas (como o aeróstato, a máquina de escrever, o avião e os automóveis bicombustíveis), o Brasil jamais teve sua produção científica reconhecida através de um prêmio Nobel (embora alguns gostem de citar Peter Brian Medawar, pelo fato dele ter nascido no Rio de Janeiro), enquanto outros países sul-americanos tais como Argentina e Venezuela, já conquistaram o seu. Até mesmo um sério candidato como Carlos Chagas em 1921, foi vítima de tamanha campanha de descrédito movida por seus pares brasileiros, que naquele ano o Nobel de Fisiologia ou Medicina não foi entregue a ninguém.[14] Outro notável cientista brasileiro injustiçado foi César Lattes, que embora tenha participado da descoberta do píon em 1947, não foi laureado com o premio Nobel de Física, mas sim Cecil Powell, que era seu chefe e não havia participado diretamente das pesquisas.[15]

O neurobiólogo Sidarta Ribeiro lembra que somente em 15 de novembro de 2007 um brasileiro, o neurocientista Miguel Nicolelis, deu uma palestra nos seminários organizados pela Fundação Nobel. Na abertura de sua apresentação, Nicolelis relembrou a final da Copa do Mundo de 1958, quando o Brasil venceu a Suécia de goleada. Até então, o país sofria com o "complexo de vira-lata" provocado pela final de 1950. Da mesma forma, e embora reconhecendo que a produção científica brasileira sofre de "limitação de recursos e de ambição intelectual", Miguel ainda assim é otimista quanto ao futuro da pesquisa no país e conclui: "é difícil prever quando um brasileiro ganhará o Nobel e que importância isso poderá ter para o país. Se redimir nosso complexo de vira-lata científico, terá inestimável valor".[16]

Análise de Humberto Mariotti[editar | editar código-fonte]

Sob a análise efetuada pelo escritor e ensaísta Humberto Mariotti,[6] o brasileiro, por ainda não ter atingido o estágio de knowledge worker preconizado na década de 1950 por Peter Drucker (no qual o trabalhador domina o conhecimento e se torna menos suscetível aos efeitos devastadores do desemprego), contenta-se com pouco e sente-se satisfeito quando recebe alguma atenção por parte das autoridades. Esta autodesqualificação já teria atravessado o Atlântico e chegado a Portugal, onde, segundo Mariotti, "trabalhador brasileiro é sinônimo de garçom ou peão de construção civil. Nossa única profissão exportável, mesmo assim não qualificada pela educação formal é, como todos sabem, a de futebolista".

Para Mariotti, vencer este complexo de inferioridade, reforçado pelos sucessivos escândalos de corrupção nos quais o governo brasileiro esteve envolvido nas últimas décadas, só poderá ser satisfatoriamente resolvido através da educação. Todavia, contrariamente a outros, não encara a raiz do problema num alegado deslumbramento brasileiro perante a cultura estrangeira (francesa até as primeiras décadas do século XX e estadunidense daí em diante). Para Mariotti, a baixa autoestima nacional provocaria uma reação contrária, de supervalorização da cultura nacional, que se encapsularia em si mesma, e rejeitaria o que vem de fora: "no Brasil, e não só aqui, o nacionalismo cultural inclui a aversão à leitura, e sobretudo àquilo que muitos consideram a mais execrável de todas as atividades: pensar, refletir e discutir ideias com outros também dispostos a fazer isso."[6]

Mariotti conclui afirmando que "como todo reducionismo, esse também produz resultados obscurantistas. Essa limitação nos leva, por exemplo, a imitar o que a cultura americana tem de pior (a massificação, a competição predatória, o imediatismo) e a não procurar aprender e praticar o que ela tem de melhor (a pontualidade, a objetividade, a pouca burocracia)".

Análise de Vicente Palermo[editar | editar código-fonte]

Em seu livro La alegría y la pasión: Relatos brasileños y argentinos en perspectiva comparada (2015), o cientista político e ensaista argentino Vicente Palermo afirma que existe, de certo modo, uma ambiguidade entre o complexo de inferioridade do povo brasileiro em geral, e a visão otimista dos governantes e classes mais abastadas.[17] Citando o sociólogo Florestan Fernandes em sua análise, o ensaísta afirma que o complexo de vira-lata vem se desfazendo, como resultado da pluralidade social e a gradual diminuição do preconceito velado que sempre existiu na sociedade brasileira.[18] Cita ainda o antropólogo e escritor Darcy Ribeiro, que atribuía à sociedade brasileira "um sincretismo cultural que valoriza a origem mestiça".[18] Palermo, por fim, cita o jornalista e cineasta Arnaldo Jabor:[18]

Reproduções extemporâneas[editar | editar código-fonte]

O ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, reafirmou repetidas vezes, com foco na Política Externa, que um setor da população brasileira mantém ainda o traço psicológico do complexo de vira-lata.[20]

A expressão foi recuperada em 2004 pelo jornalista estadunidense Larry Rohter, que em matéria para o The New York Times sobre o programa nuclear brasileiro, escreveu:

O Brasil estaria assim, desejoso de ser reconhecido como igual no concerto das nações, mas tropeçaria sucessivamente em sua baixa autoestima, reforçada pelos incidentes folclóricos acima relatados e outros do mesmo gênero ("a capital do Brasil é Buenos Aires", "os brasileiros falam espanhol", entre outros) sucessivamente cometidos pela mídia e autoridades estrangeiras.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Notas

  1. O diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza Filho foi o verdadeiro autor da frase "O Brasil não é um país sério". Ele a teria pronunciado durante o episódio que envolveu Brasil e França conhecido como Guerra da Lagosta. Tal dito é incorretamente atribuído a Charles de Gaulle.

Referências

  1. Bandini, Fernando (10 de agosto de 2006). «A pátria em chuteiras de Nélson Rodrigues». Labjor-Unicamp. ComCiência (79). ISSN 1519-7654. Consultado em 8 de março de 2018 
  2. Rodrigues, Nelson. «Complexo de Vira-Latas». Releituras. Consultado em 8 de março de 2018 
  3. Gomes, Julio (17 de agosto de 2016). «A linha tênue entre o vira-latismo e o reconhecimento». Blog do Julio Gomes. UOL Esporte. Consultado em 8 de março de 2018 
  4. Saraiva, Mauricio (27 de abril de 2016). «Sem pachequismo nem vira-latismo». Blog Vida Real. Globoesporte.com. Consultado em 8 de março de 2018 
  5. Rocha, Bruno Lima (8 de julho de 2016). «Viralatismo e entreguismo midiático e as TVs internacionais». Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Consultado em 8 de março de 2018 
  6. a b c Humberto Mariotti. «O Complexo de Inferioridade do Brasileiro». Instituto de Pesquisa BSP. Consultado em 4 de janeiro de 2014 
  7. O desconforto de não ser branco Arquivado em 22 de agosto de 2006, no Wayback Machine. por Antonio Motta em Biblioteca Virtual Gilberto Freyre Arquivado em 8 de dezembro de 2007, no Wayback Machine.. Visitado em 16 de novembro de 2007.
  8. a b Flávio Raimundo Giarola (24 de agosto de 2010). «Racismo e teorias raciais no século XIX: Principais noções e balanço historiográfico». história e-história. Consultado em 2 de janeiro de 2014. Arquivado do original em 3 de janeiro de 2014 
  9. Adilson Miguel (fevereiro de 2013). «Lobato e o racismo». Revista Emília. Consultado em 2 de janeiro de 2014. Arquivado do original em 14 de novembro de 2013 
  10. Pensamento social brasileiro por Lina Rodrigues de Faria em Universidade Anhembi Morumbi. Visitado em 16 de novembro de 2007.
  11. SILVA, Sérgio Amaral. «Males de Origem: Inferior por quê?». Aventuras na História [ligação inativa]
  12. LOBATO, Monteiro. A todo transe in "Literatura do Minarete". São Paulo: Brasiliense, 1959.
  13. Monteiro Lobato - Jeca Tatuzinho Arquivado em 23 de maio de 2006, no Wayback Machine. em Brasil Cultura. Visitado em 16 de novembro de 2007.
  14. DIAS, João Carlos Pinto.Carlos Chagas: Prêmio Nobel em 1921
  15. «Prêmio Nobel: Foi quase». Super Interessante. 31 de outubro de 2016. Consultado em 11 de outubro de 2018. Cópia arquivada em 1 de novembro de 2016 
  16. RIBEIRO, Sidarta. (2008) À espera das uvas suecas. Revista Mente & Cérebro. Janeiro de 2008. Pg. 25. ISSN 1807-1562
  17. Palermo 2005, p. 38.
  18. a b c Palermo 2005, p. 39.
  19. Arnaldo Jabor, O Globo, 20 de janeiro de 2001
  20. AMORIM, Celso. «O complexo de vira-lata». Carta Capital 
  21. Rohter, Larry (31 de outubro de 2004). «If Brazil Wants to Scare the World, It's Succeeding». The New York Times. Consultado em 16 de novembro de 2007. Writing in the 1950's, the playwright Nelson Rodrigues saw his countrymen as afflicted with a sense of inferiority, and he coined a phrase that Brazilians now use to describe it: "the mongrel complex." Brazil has always aspired to be taken seriously as a world power by the heavyweights, and so it pains Brazilians that world leaders could confuse their country with Bolivia, as Ronald Reagan once did, or dismiss a nation so large - it has 180 million people - as "not a serious country," as Charles de Gaulle did. 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]