Canção de gesta – Wikipédia, a enciclopédia livre

As canções de gesta (em francês chansons de geste), são um conjunto de poemas épicos surgidos no raiar da literatura francesa, entre os séculos XI e XII.

Essas canções exerceram grande influência na literatura medieval, tanto em sua região de origem como por toda a Europa, e, mesmo com o fim de Idade Média, sua influência continuou a sentir-se na literatura e até no folclore.

Características[editar | editar código-fonte]

Forma poética[editar | editar código-fonte]

Uma canção de gesta é um longo poema épico narrativo medieval que celebra os feitos de heróis do passado.[1][2] O principal manuscrito d'A Canção de Rolando, a mais antiga canção de gesta preservada, tem um total de 4002 versos, mas algumas canções podiam chegar a dezenas de milhares de versos.[2] Em geral as mais antigas possuem versos de dez sílabas com uma pausa (uma cesura) depois da quarta ou quinta sílaba. Inicialmente as canções não utilizavam a rima, e sim a assonância, ou seja, a repetição do som das vogais nos versos de uma estrofe. Os versos estão organizados em estrofes de tamanho variável chamadas laisses em francês. Mais tarde, várias canções passaram a utilizar a rima e versos dodecassílabos (versos alexandrinos).[2] A língua das canções foi o francês antigo, mas muitas foram traduzidas a outras línguas ainda durante a Idade Média.

Origens[editar | editar código-fonte]

Como indica o nome, as canções de gesta foram pensadas para serem cantadas com acompanhamento musical.[3] A audiência era composta por pessoas de variados estamentos sociais, em geral analfabetas, nas vilas, cidades e na cortes dos nobres da época. As canções eram recitadas por cantores profissionais - jográis e menestréis - e enquanto alguns deles limitavam-se a repetir as composições tradicionais, outros criavam novas canções ou adicionavam novos episódios às canções conhecidas, adaptando-as às diferentes audiências e garantindo o interesse em suas recitações.

Não se sabe exatamente como surgiram as canções de gesta. A mais antiga conhecida, o manuscrito de Oxford d'A Canção de Rolando, data de cerca de 1100, mas apresenta um tal refinamento e complexidade em sua composição que é provável que já bem antes desta data houvesse uma tradição de canções do mesmo tipo.

Temática[editar | editar código-fonte]

Os temas de quase todas as canções estão ligadas à época da dinastia carolíngia (séculos VIII e IX), especialmente ao rei franco Carlos Magno e seus paladinos e nobres, e suas lutas contra os pagãos e contra os muçulmanos.[4] Assim, a maioria das canções fazem parte da chamada Matéria de França da literatura medieval.

Durante a Idade Média, Carlos Magno e, em menor medida, governantes carolíngios como Luís o Piedoso e Carlos Martel, foram vistos como campeões da Cristandade, que lutaram e impediram que a Europa inteira fosse conquistada pelos mouros e sarracenos. Nos séculos XI e XII, a época em que surgem as canções de gesta, a lembrança de Carlos Magno ainda era muito viva,[3] e a Europa sentia-se cercada pela ameaça muçulmana, que dominava a Península Ibérica a Ocidente e a Terra Santa a Oriente. Assim, no contexto das Cruzadas e da Reconquista, é natural que as canções de gesta tratassem majoritariamente do tema da guerra santa contra os muçulmanos.[4]

Muitos dos heróis das canções são personagens históricos que guerrearam contra mouros e sarracenos, como Carlos Magno, os nobres francos Rolando e Guilherme de Orange, o conquistador de Jerusalém Godofredo de Bulhão e, na Península Ibérica, o Cid Campeador. Junto a esses personagens verídicos há vários personagens puramente fictícios, alguns monstruosos, como o gigante Ferrabrás, e outros com poderes mágicos como o mago Maugis e o cavalo Baiarte. Da mesma forma, enquanto que muitos dos episódios das canções estão baseados em eventos históricos, como a Batalha de Roncesvales (788) ou o Cerco de Jerusalém (1099), a maioria está baseada em lendas ou na imaginação do autor. Também é frequente que uma batalha seja resolvida por intervenção divina, o que é uma forma pela qual o autor mostra que a razão estava do lado dos cristãos.

Ciclos[editar | editar código-fonte]

Dependendo da temática, as 80 canções de gesta francesas conhecidas podem ser agrupadas em grupos ou ciclos. Já em 1215, um escritor de canções, Bertrand de Bar-sur-Aube, classificou-as de acordo à temática em três grupos;[2][3] o Ciclo do rei (dedicado a Carlos Magno e seus paladinos), o Ciclo de Doon de Mayence (que coincide em grande parte com o que atualmente é chamado o Ciclo dos barões rebeldes) e o Ciclo de Garin de Monglane (relacionado a personagens relacionados ao conde Guilherme de Orange). Atualmente reconhecem-se alguns outros ciclos, mas a classificação de Bertrand continua sendo usada. Os mais importantes ciclos são:

Ciclo do rei[editar | editar código-fonte]

Agrupa os vários poemas em que os personagens principais são o rei franco, Carlos Magno e seus paladinos.[5] Em algumas os sucessores imediatos de Carlos também são personagens. O tema mais importante é a luta de Carlos e seus guerreiros, como Rolando e Oliveiros, contra os muçulmanos. Exemplos importantes:

  • A Canção de Rolando (La Chanson de Roland, c. 1100): é a canção de gesta mais antiga conhecida, e também a mais célebre; o manuscrito mais antigo data de c. 1100. A canção trata da emboscada em que morrem Rolando, Oliveiros, o arcebispo Turpim e outros paladinos na Batalha de Roncesvales, traídos pelo cavaleiro franco Ganelão. Na segunda parte do poema Carlos Magno vinga seus paladinos.
  • A Peregrinação de Carlos Magno (Pèlerinage de Charlemagne, c. 1140): trata de uma peregrinação fictícia de Carlos Magno e seus paladinos a Jerusalém - onde conseguem várias relíquias - e Constantinopla.
  • Ferrabrás (Fierabras, c. 1170): trata da luta entre o rei Carlos e seus paladinos contra o rei muçulmano Balão e seu filho gigantesco, Ferrabrás. No final, Oliveiros vence Fierabrás e este converte-se ao Cristianismo junto a sua irmã, Floripes, que também é um dos personagens principais.
  • Aspremont (c. 1190): a Europa é invadida pelo rei sarraceno Agolant e seu filho Helmont. No sul da Itália, Carlos Magno e seus paladinos lutam e vencem os invasores. Na batalha mais decisiva, o jovem Rolando vence Helmont e recebe de Carlos Magno a espada Durindana e o cavalo Vigilante.
  • Chanson de Saisnes (Canção dos Saxões, c. 1200): primeira canção com autor conhecido, o escritor Jean Bodel. Trata das campanhas militares de Carlos Magno contra os saxões, que realmente ocorreram no século VIII.

Ciclo de Guilherme d'Orange[editar | editar código-fonte]

Este ciclo de vinte e quatro canções desenvolve-se ao redor de Guilherme de Orange, conde de Tolosa em tempos carolíngios, que lutou contra os muçulmanos e terminou seus dias numa abadia como santo.[6] O ciclo também é chamado Ciclo de Garin de Monglane, nome de um ancestral lendário de Guilherme.[3]

  • Canção de Guilherme (Chanson de Guillaume, c. 1140): é uma das poucas canções de gesta de antes de 1150. A história é relacionada à luta contra os sarracenos no sul da França; na primeira parte são heróis Guillherme e seu sobrinho, Vivien, enquanto na segunda, com Vivien morto, Guilherme é ajudado por Ranouard.
  • A Coroação de Luís (Couronnement de Louis, 1150-1170): a canção, como indica o título, desenvolve-se ao redor da coroação de Luís o Piedoso, filho de Carlos Magno. Ao morrer o rei, o príncipe Luís tem apenas 15 anos e vai à corte de Gulherme de Orange. Juntos vão em peregrinação a Roma, que encontram cercada por sarracenos. Na batalha que se segue, Guilherme consegue livrar a cidade dos invasores.
  • Le Charroi de Nîmes (Comboio de Nimes, 1150-1170): Luís o Piedoso encarrega Guilherme de tomar a cidade de Nimes dos sarracenos. Guilherme se disfarça de mercador e esconde suas tropas num comboio de carroças; assim consegue entrar na cidade e tomá-la.
  • Le Prise de Orange (A Tomada de Orange, 1150-1170): Guilherme decide tomar a cidade de Orange, governada por Orable, uma bela rainha sarracena. O nobre franco consegue tomá-la e seduzir a rainha, que é batizada - com o nome de Guibourc - e casa-se com Guilherme.
  • Aliscans (fins século XIII):
  • Girart de Vienne (Geraldo de Vienne, c. 1180): de Bertrand de Bar-sur-Aube.
  • Enfances Guillaume (Juventude de Guilherme, século XIII)

Ciclo dos Barões Rebeldes[editar | editar código-fonte]

Neste grupo estão agrupadas várias canções que retratam nobres em conflito com outros nobres ou Carlos Magno. Acredita-se que estes poemas, datados de fins do século XII e século XIII, refletem a perda de poder dos barões frente a um poder real cada vez mais forte e centralizado.[7] Apesar disso, os heróis rebeldes deste ciclo não questionam o princípio de autoridade feudal nem tentam depor os reis com os quais estão em conflito.[7] O ciclo também é chamado Ciclo de Don de Mogúncia, por Don de Mogúncia (Doon de Mayence) ser o ancestral fictício de vários heróis rebeldes como Reinaldo de Montalvão e o mago Maugis.

  • Quatro filhos de Amão (Quatre fils Aymon, fins do século XII): trata do conflito entre os quatro filhos do duque Amão (Aymon) e Carlos Magno, retratado como um rei vingativo e traiçoeiro. Os quatro irmãos são ajudados pelo seu primo, o mago Maugis, e seu cavalo mágico Baiarte. O principal herói do poema é Reinaldo de Montalvão.
  • O Cavaleiro Ogier (Chevalerie Ogier, início do século XIII): o personagem do título é Ogier o Dinamarquês (Ogier le Danois), criado na corte de Carlos Magno. O filho bastardo de Ogier é morto por um dos filhos do rei, Carlos o jovem. Como o crime não é punido pelo rei, Ogier rebela-se e aguenta um cerco em seu castelo durante sete anos, até ser capturado. Uma invasão sarracena faz com que sua ajuda seja necessária, e Ogier salva a França. Casa-se então com uma princesa inglesa e recebe feudos de Carlos Magno.
  • Raoul de Cambrai (fins do século XII): Raul de Cambrai disputa o feudo de Vermandois com Herberto I de Vermandois. Como o rei carolíngio Luís de Ultramar apóia Herberto, Raul guerreia com os dois.
  • Girart de Roussillon (c. 1170)

Ciclo das Cruzadas[editar | editar código-fonte]

Conjunto de canções de gesta sobre a Primeira e a Terceira Cruzadas, composto por cerca de trinta poemas.[8] Em várias o herói é Godofredo de Bulhão, conquistador de Jerusalém em 1099.

  • Canção de Antioquia (Chanson d'Antioche, fins século XII): como indica o nome, trata da viagem dos guerreiros da Primeira Cruzada à Terra Santa e do Cerco de Antioquia (1098), em que foi tomada a cidade.
  • Canção de Jerusalém (Chanson de Jèrusalem, século XIII): trata da chegada dos cruzados da Primeira Cruzada à Terra Santa e do cerco de Jerusalém, além da posterior batalha de Ascalão (travada a 12 de Agosto de 1099).
  • Chétifs (Cativos, século XIII)

Canções de gesta em castelhano[editar | editar código-fonte]

O termo "canção de gesta" (em espanhol, Cantar de gesta) também é usado em referência à poesia épica escrita em castelhano antigo durante a Idade Média. Apenas três poemas, dois dos quais de maneira fragmentária, estão preservados atualmente:

  • Poema de Mio Cid: é a única canção de gesta castelhana que ese encontra quase integralmente preservada e é a mais antiga, datando de fins do século XII. O poema narra as aventuras e conquistas de Rodrigo Díaz de Vivar, chamado Mio Cid ou Cid Campeador, um dos principais heróis da Reconquista da Península Ibérica.
  • Mocedades de Rodrigo: conhecida através de um manuscrito tardio datado de cerca de 1360. Narra as aventuras de juventude do Cid. O único manuscrito preservado possui 1164 versos e uma parte em prosa.
  • Canção de Roncesvales: apenas dois folios contendo 100 versos existem atualmente desta canção, datada do século XIII. O fragmento preservado está relacionado a um episódio imediatamente posterior à Batalha de Roncesvales e mostra Carlos Magno lamentando-se pela perda dos seus paladinos, especialmente Rolando.

Há textos em prosa e outros textos medievais que sugerem a existência de outras canções de gesta castelhanas hoje perdidas. Um exemplo é a hipotética Canção dos sete infantes de Lara, conhecida graças a versões em prosa, e a Canção de Fernán González, cujo argumento é conhecido graças ao Poema de Fernán González, do século XV.

A épica medieval castelhana - representada especialmente pelo Poema de Mio Cid - diferencia-se da francesa em alguns aspectos. O mais chamativo é o realismo do argumento; as descrições geográficas são bastante precisas e de maneira geral não há explicações mágicas (intervenções divinas, milagres) na história.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]